Crédito ao consumo e os portugueses: uma relação de dependência?

Doutrina

Atualmente, a comunicação social está inundada de notícias referentes a um aumento do recurso ao crédito ao consumo, dando nota de que esta tendência de crescimento se mantém há 16 meses consecutivos. Este fenómeno, que parece anunciar o crédito ao consumo como acessível e a opção perfeita para um consumidor que se vê numa situação de necessidade ou apenas de tentação, aparenta ter razões que não se prendem apenas com o desejo de adquirir bens.

Com base no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2008/48/CE, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, podemos definir estes como o contrato pelo qual um credor (pessoa singular ou coletiva no exercício da atividade comercial ou profissional) concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante. Neste contexto, a figura da Taxa Anual de Encargos (TAEG) é central, constituindo um elemento obrigatório e relevante ao longo da fase pré-contratual e no próprio momento da celebração do contrato, pois permite ao consumidor comparar as propostas apresentadas por eventuais financiadores.

À primeira vista, parece que os portugueses recorrem ao crédito ao consumo apenas com a finalidade de adquirir algo valioso. Segundo dados do Banco de Portugal, bancos e financeiras concederam aos consumidores um montante recorde de 5,3 mil milhões de euros entre janeiro e julho, o que se traduz numa subida de 9% relativamente ao mesmo período do ano passado, destacando-se os empréstimos para satisfazer necessidades de maior valor, nomeadamente para compra de carro e lar. Observando estes números, podemos afirmar que os portugueses valorizam a compra de bens próprios duradouros (ter o seu próprio carro, o seu próprio lar), mas não deixa de ser preocupante a tendência que se está a criar: muitas famílias recorrem a empréstimos pois de outra forma não teriam capacidade de comprar bens de valor mais avultado.

Mas não só. Entre 2021 e 2023, Portugal viveu um período de forte inflação, provocado pelo pós-pandemia, mas principalmente pela guerra na Ucrânia, o que minou substancialmente o poder de compra das classes média e média baixa. O crédito ao consumo passou a ser visto como uma ferramenta quase inevitável para gerir a vida financeira diária das famílias, e não apenas associado à compra de bens mais valiosos, pois muitas destas se veem na situação de o seu rendimento não ser suficiente para suprir despesas correntes. Mesmo após este período, o poder de compra das famílias portuguesas não se alterou de forma significativa, sendo que os preços se mantiveram elevados e o aumento dos salários não se fez acompanhar.

Em Portugal ou em qualquer parte do mundo, em momentos de necessidade, as alternativas disponíveis tendem a parecer sempre mais apelativas. É neste contexto que o sistema financeiro se apresenta não só como uma solução, mas como promotor de algo que pode ser muito perigoso para os consumidores: as instituições financeiras apresentam o crédito ao consumo como simples e prático, como algo banalizado e não excecional, com grandes marcas a celebrar acordos com grandes superfícies para oferecer opções de crédito logo no momento da compra, sem nunca alertar para o risco de um endividamento descontrolado. O que tende a acontecer é que um consumidor em situação de necessidade vai, incentivado por todo este marketing agressivo, olhar para o crédito como a resolução para o seu problema de forma imediata, não ponderando as consequências futuras, acabando por se endividar (já estando previamente numa posição de fragilidade), o que pode levar a endividamentos sucessivos. Mas não nos podemos esquecer que, mesmo sem a necessidade financeira imediata, muitos recorrem ao crédito, aliciados pela oportunidade de satisfazer desejos de consumo.

Desta forma, é possível concluir que os portugueses estão de alguma forma dependentes do crédito ao consumo que, se antes era visto como um meio de sustento a uma cultura de consumo imediato e a um modo de vida moderno, como algo ocasional, hoje em dia é indispensável para a sobrevivência, o que diz muito sobre o estado de uma economia que força as famílias a endividarem-se para manter o seu nível de vida. Porém, não nos podemos esquecer que o crédito ao consumo também atua como motor do consumismo, deixando para trás a ideia de que é o trabalho e a disciplina que permitem alcançar conquistas deste tipo.

Não negando que a economia beneficia do aumento do consumo que é possível por meio de crédito, a ilusão criada por esta corrida ao mesmo tem razões e consequências por trás que não devem ser ignoradas.

Crédito ao Consumidor e Superendividamento – Aprovação do Projeto de Lei n.º 3515/15

Legislação

Por Fernando Martins, Diretor-Presidente do BRASILCON

Com muita satisfação, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON informa a aprovação em data de 11/05/2021 do Projeto de Lei nº 3515/15, outrora em trâmite na Câmara dos Deputados e que agora retorna ao Senado Federal sob nova designação (PL 1805/21), considerando algumas emendas aditivas e supressivas.

O escopo de referido projeto, além da necessária atualização ao Código de Defesa do Consumidor, é aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e ao mesmo tempo prevenir e estruturar políticas públicas de tratamento ao superendividamento. Neste aspecto, é o disposto no art. 54-A que cuida em conceituar o superendividamento como a impossibilidade do consumidor, pessoa natural e de boa-fé, em arcar com a totalidade dos débitos, vencidos e vincendos, sem comprometimento do mínimo existencial em plena prejudicialidade ao núcleo familiar.

A iniciativa deste projeto de lei deriva de atuação acadêmica do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS quando realizou pesquisa empírica em 2004 junto às famílias de Porto Alegre identificando inúmeras pessoas em situação de subconsumo, com sérias restrições ao mercado por órgãos de proteção ao crédito, considerando débitos derivados de empréstimos bancários (e assemelhados) superiores à capacidade de pagamento por conta de acidentes da vida (desemprego, óbito, divórcio etc.). A pesquisa evoluiu em proposta de lei no ano de 2005 em congresso realizado pelo Brasilcon, desencadeando a partir daí inúmeros trabalhos científicos.

Somaram-se à iniciativa pioneira da UFRGS e do Brasilcon, posteriormente, as orientações do Banco Mundial para adoção de normas internas no tratamento ao superendividamento, sem prejuízo da experiência do direito estrangeiro, já que em França a atualização do Code de la Consommation pela Lei Neiertz dispunha sobre modelo de enfrentamento ao tema (em parte recepcionado pelo PL 3515), assim como demais países na experiência quanto à falência civil (bankruptcy).

Anote-se que enquanto o sistema jurídico nacional já dispunha de acolhida propositiva às pessoas jurídicas em estágio pré-falimentar, como na chamada lei de recuperação judicial (Lei nº 11.101/05), de outro lado, quedava-se em políticas públicas aos consumidores sacrificados pelos aumentos significativos de débitos que impediam a continuidade dos padrões mínimos de subsistência. Nestas condições, o consumidor tornava-se insolvente e aos seus bens e eventuais acervos restava nomeado um administrador. Clara hipótese de incapacidade civil (ou morte civil).

Vale a menção que a ‘sociedade de consumo’, através das publicidades, do comércio eletrônico e da extrema facilitação ao acesso crédito induz padrões comportamentais não compatíveis com a baixa educação financeira do brasileiro, por isso a necessidade de promoção aos consumidores nesta condição humana. Entretanto, diante da pandemia proporcionada pela COVID-19 o superendividamento de famílias sofreu enorme impacto (mais de 30 milhões de superendividados) demonstrando ainda mais a pertinência da vigência de lei que possa resolver pragmaticamente conflitos deste naipe. Sem se descurar da advertência de que a futura legislação está a exigir tanto a boa-fé do consumidor como o adimplemento dos débitos (cultura do pagamento). Não se trata de perdão, ao contrário: adimplemento solidário, com a repactuação das dívidas. Como o PL 3515 (agora 1805) teve origem no Senado para lá retorna, a fim de verificar as modificações introduzidas pelos deputados, as quais, contudo, são pontuais e não desnaturam a estrutura e funcionalidade fixadas desde o início. Um passo verdadeiramente importante, na medida em que se torna concreto: i – o estabelecimento do crédito responsável (caracterizado pelo dever de lealdade nas informações prestadas pelos intermediários); ii – a inserção de prevenção (com vedações publicitárias e de ofertas incompatíveis com a real composição do crédito; avaliação do risco quanto ao empréstimo pelo fornecedor; respeito às condições sociais e de saúde dos consumidores); iii – tratamento promocional aos superendividados (com reunião global, repactuação e escalonamento dos débitos, para tanto, instalando-se câmaras de conciliação nos órgãos administrativos componentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e permitindo-se mediação e conciliação perante o Poder Judiciário); iv – atribuindo efetividade ao mínimo existencial estabelecido pela legalidade constitucional.

O quadro atual do superendividamento dos consumidores no Brasil

Legislação

Por Claudia Lima Marques, Professora Titular da UFRGS, Porto Alegre, Brasil

 

A sociedade brasileira tem testemunhado o crescimento do fenômeno do superendividamento, aqui compreendido como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, de boa-fé, pagar todas suas dívidas atuais e futuras sem prejudicar o mínimo existencial (Art. 54-A, §° do Projeto de Lei-PL 3515/2015 de Atualização do Código de Defesa do Consumidor). Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), elaborada pela Confederação Nacional do Comércio, em janeiro de 2021, 66,5% das famílias entrevistadas encontravam-se endividadas, sendo que a inadimplência é 25,2% e em 79,4% das famílias o motivo das dívidas era o cartão de crédito. Para as famílias que recebem até 10 salários mínimos mensais, o percentual de famílias endividadas aumenta para 67,7% no Brasil. (PEIC | Índices | Pesquisas | FecomercioSP).

Desde 2015, tramita na Câmara de Deputados o Projeto de Lei 3515, aprovado por unanimidade no Senado Federal, dispondo sobre o “aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e a prevenção e o tratamento do superendividamento”. O projeto propõe o estabelecimento de um plano de pagamento das dívidas, com medidas de dilação de prazos e redução dos encargos, que permita garantir o pagamento dos credores sem sacrifício do mínimo existencial do consumidor pessoa natural (art. 104-A). O plano advém de uma conciliação em bloco e extrajudicial com os credores (Art. 104-A e Art. 104-C), e se não exitosa, um plano compulsório será determinado pelo juiz (Art. 104-B). Além disso, o Projeto dispõe sobre a prevenção do superendividamento dos consumidores ao estabelecer limites à publicidade de crédito, proibir práticas comerciais e o assédio de consumo, em especial a consumidores idosos, crianças e analfabetos, expandindo a lista de práticas e cláusulas abusivas (Art. 54-A a G) do Código de Defesa do Consumidor. A proposta foi objeto de amplo debate, seja no âmbito da sociedade civil, na época da redação do anteprojeto que lhe deu origem, seja no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, cujas comissões encarregadas da análise de seu texto realizaram diversas audiências públicas e apresentaram pareceres dos respectivos relatores que aperfeiçoaram o seu texto. Em junho de 2019, o PL passou a ser debatido por uma Comissão Especial, apontando, assim, para um progresso promissor na aprovação do projeto.

Em 2020, em virtude da pandemia mundial da Covid-19 e seus desdobramentos econômicos e sociais, uma resposta ao quadro brasileiro de superendividamento se tornou urgente. No mesmo período, foi aprovado o pedido de urgência na tramitação do PL 3515, o qual, contudo, continua em pauta para votação. Em dezembro, apesar de pautado não houve tempo para seu exame e agora em fevereiro, a liderança da Câmara espera poder votá-lo no plenário. Esperamos que seja em breve, antes do CDC completar 30 anos de vigência em março de 2021!

A aprovação do PL 3515/2015, em meio à crise da COVID-19, implementaria uma disciplina específica para o crédito responsável e o tratamento do superendividamento, a partir de uma nova sistemática de renegociação de dívidas – a conciliação em bloco -, aproximando o direito brasileiro do standard internacional. O PL 3515/2015 não prevê o perdão de dívidas, mas cria pela primeira vez no Brasil, um direito de arrependimento do crédito consignado por 7 dias. Esperamos para breve aprovação!