Bens recondicionados: novo ou usado?

Doutrina

A reparação de bens usados para venda posterior é uma prática imemorial na história da humanidade: na Grécia Antiga reparavam-se e vendiam-se urnas cerimoniais desgastadas; no período Renascentista era comum a reparação e venda posterior de móveis; no século XX as lojas de antiguidades tornaram-se populares em inúmeras vilas e cidades. Foi também no século XX que se deram os primeiros passos no desenvolvimento da eletrónica e dos semicondutores, que atualmente constituem a base dos objetos eletrónicos e dos eletrodomésticos. Aqui, a atividade de reparar e vender objetos em segunda mão tornou-se mais popular que nunca, criando mercados globais para estes tipos de bens: telemóveis, computadores, impressoras, televisões, entre outros. Quando são colocados no mercado, estes bens são designados por bens “recondicionados” (muitas vezes chamados de bens “como novos” ou “quase novos”), e consistem em produtos usados que foram recolhidos pelo vendedor ou por um terceiro e que, após intervenção técnica para manutenção e reparação são novamente colocados no mercado.

O “recondicionamento” dos bens tem inúmeras vantagens associadas: reutiliza-se um equipamento que poderia acabar por ser destruído ou inutilizado, o consumidor consegue adquirir um bem com caraterísticas semelhantes a um bem novo por um custo reduzido, e o vendedor consegue obter uma contrapartida económica pela sua atividade. Por outro lado, esta atividade traz riscos associados: a reparação pode não ser suficiente para resolver os problemas do bem, pode haver outras desconformidades não detetadas, e, sobretudo, o consumidor pode ser induzido em erro com certas expressões que estão associadas à venda dos bens recondicionados (“como novo”, “quase novo”). Esta confusão pode levar a uma certa fragilidade dos consumidores e criar constrangimentos associados à falta de informação.

De um ponto de vista legal, é interessante verificar que na legislação de consumo não existe uma definição de bem novo ou de bem usado. A Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2019 relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens não fornece nenhuma definição de bem em segunda mão. Não obstante, a Diretiva faz várias referências a este tipo de bens nos Considerandos 36, 43, 71, e nos artigos 3.º, 10.º e 25.º. O Considerando 43 é especialmente relevante para perceber a transposição desta diretiva para o ordenamento jurídico português:

“No que diz respeito a determinados aspetos, poderá justificar-se um tratamento diferente dos bens em segunda mão. Apesar de um período de responsabilidade ou prazo de prescrição de dois anos ou mais ser genericamente compatível com os interesses tanto do vendedor como do consumidor, tal poderá não ser o caso no que diz respeito aos bens em segunda mão […]”.

O Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril que consagra o regime da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, indica no art. 1.º-B al. b) que se entende por bem de consumo “qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão”. Já no art. 5.º n.º 2, relativo ao prazo de garantia, a lei estabelece que: “tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número anterior[1] pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes”.

Apesar da legislação de consumo não definir bens de segunda mão, podemos encontrar uma definição que pode ser utilizada para estes bens no Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de outubro, que estabelece o Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e Antiguidades. O art. 2.º al. a) deste diploma refere que, para efeitos deste diploma, consideram-se bens em segunda mão “os bens móveis susceptíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação, com exclusão dos objectos de arte, de colecção, das antiguidades, das pedras preciosas e metais preciosos, não se entendendo como tais as moedas ou artefactos daqueles materiais”. A primeira parte desta definição poderá ser utilizada para definir bens em segunda mão de forma generalizada: consideram-se bens em segunda mão os bens móveis suscetíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação. Desta forma, os bens recondicionados ficam englobados no conceito de bens em segunda mão, clarificando a sua situação jurídica no direito do consumo.

Como referimos anteriormente, a legislação de consumo não distingue bens usados de bens recondicionados. Contudo, recentemente, o Conselho de Ministros emitiu um comunicado onde informa que foi aprovado o decreto-lei que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo para o direito interno a Diretiva 2019/771 e a Diretiva 2019/770. Este diploma trará alterações significativas na legislação de consumo em Portugal e visa conferir “o adequado enquadramento a novas tipologias de bens”. Apesar do texto do diploma ainda não ter sido tornado público, o Jornal de Negócios avançou que:
“De acordo com o texto do diploma, o vendedor passará a ser “responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem”. Caso se trate de bens usados, o prazo de três anos poderá ser reduzido para 18 meses, “por acordo entre as partes. No entanto, “se o bem for anunciado como um bem recondicionado”, como é frequente no caso de computadores ou smartphones, a garantia também será de três anos.”

Uma alteração legislativa neste sentido é benéfica para o consumidor por dois motivos. Em primeiro lugar, um aumento do prazo de garantia legal de um para três anos garante que se os produtos comercializados não estiverem livres de desconformidades durante esse período, caberá ao vendedor repor a conformidade, assegurando os consumidores que o vendedor e o produtor têm o ónus de comercializar bens de qualidade fidedigna e livres de desconformidades. Em segundo lugar, o legislador reconhece que a proliferação de bens anunciados como “quase novos” põe em causa o direito do consumidor de ser informado de forma clara, objetiva e adequada sobre as caraterísticas principais dos bens adquiridos[2]. Uma solução que alinhe o prazo de garantia legal dos bens “como novos” com os bens novos poderá ajudar a colmatar os prejuízos que os consumidores poderão vir a ter quando não conseguirem identificar os bens recondicionados como sendo bens em segunda mão.

É importante que as práticas económicas e comerciais possam estar em linha com a redução da pegada ecológica e com os objetivos de preservação ambiental através de mecanismos como o recondicionamento de eletrodomésticos e equipamentos eletrónicos. Não obstante, é importante que a lei mantenha uma proteção adequada aos consumidores nestes fenómenos emergentes, evitando que os operadores económicos possam acentuar o desequilíbrio entre as partes envolvidas nas relações de consumo.


[1] Segundo o artigo 5.º n.º 1 deste diploma, o prazo de garantia para coisa móvel é de dois anos.

[2] Artigo 8.º n.º 1 al. a) da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) – Direito à informação em particular.

“Segunda chave do carro” – Comentário ao Ac. TRP, 20-02-2020, rel. Aristides Rodrigues de Almeida

Jurisprudência

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Resumo do caso

A situação fática colocada perante o tribunal foi a da celebração de um contrato de compra e venda de um automóvel, coligado com um contrato de mútuo celebrado entre o comprador do carro e uma instituição bancária. No momento da celebração do contrato, o vendedor do carro comprometeu-se a entregar uma segunda chave ao comprador, uma vez que não dispunha dela naquele momento. O comprador começou a utilizar normalmente o carro, até que este foi furtado. A segunda chave nunca chegou a ser entregue, pelo que o comprador exerceu o direito de resolução extrajudicial do contrato de compra e venda com base no incumprimento dessa obrigação, resolvendo ainda o contrato de mútuo com base na cessação daquele.

Questões interessantes do ponto de vista do Direito do Consumo

  1. Ónus de alegação e prova dos factos que permitem a qualificação do comprador como consumidor

Segundo as regras gerais, a alegação e prova dos factos que consubstanciam a qualidade de consumidor do autor cabem a este, na medida em que são factos que o beneficiam (art. 342.º-1 Código Civil). Ou seja, é ao autor que incumbe o ónus de alegar e provar, nomeadamente, a utilização que confere ao bem adquirido (art. 1.º-B-a) do DL n.º 67/2003), por forma a, dando-se como provado que esse uso é privado, gozar do estatuto de consumidor.

No entanto, convém esclarecer que o consumidor não tem o ónus de invocar esse estatuto/qualidade, ou seja, não tem de invocar as normas de direito (do consumo) aplicáveis ao caso, uma vez que é ao tribunal que incumbe a aplicação do direito, independentemente da configuração jurídica que as partes dão ao conflito (art. 5.º-3 do Código de Processo Civil). Este ponto foi salientado pelo TJUE, no Acórdão Faber (1), onde se pode ler que “o tribunal está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor, ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade”.

O próprio TRP reconheceu a mencionada jurisprudência europeia, não tendo, no entanto, considerado que dispunha dos elementos de facto suficientes para aferir essa qualidade do comprador do carro. Argumenta o tribunal, na fundamentação de direito, que o autor não se referiu ao uso destinado ao carro e que a natureza do bem (uma carrinha) não indicia por si só uma utilização privada do mesmo.

Parece-nos que o dever de averiguação do tribunal nacional reconhecido pelo TJUE não foi incumprido, na medida em que o ónus de alegação dos factos que sustentam a aplicação do direito do consumo ao litígio permanece na esfera do autor (art. 5.º-1 do CPC), ainda que de forma “atenuada”. Se o tribunal não considerou indiciada nas peças processuais  essa qualidade nem tal resultou da discussão em julgamento, não nos parece ser exigível ao tribunal o cumprimento de tal dever de pedido de esclarecimento, à luz dos princípios gerais do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.

2. Conceito de desconformidade do bem para efeitos de aplicação do DL n.º 67/2003

Após excluir a existência de um defeito no bem, nos termos do artigo 913.º CC, e bem assim afastar a aplicação do DL n.º 67/2003 pelas razões que vimos no ponto anterior, o TRP analisou, ainda assim, se o bem entregue pelo vendedor ao comprador em cumprimento do contrato era desconforme com este, nos termos da legislação de proteção do consumidor.

Recapitulando a factualidade em análise, sabemos que apenas no momento da entrega do veículo objeto do contrato é que o comprador se apercebeu de que não lhe seriam entregues duas chaves. Nesse momento foi convencionada essa entrega em momento posterior, constituindo-se tal obrigação.

Essa obrigação nunca chegou a ser cumprida, o que implica a conclusão de que o bem entregue não corresponde completa e perfeitamente ao que foi convencionado pelas partes. É precisamente este um dos pontos em que o art. 2.º-1 do DL n.º 67/2003 se revela mais protetor da posição jurídica do comprador do que o regime geral do Código Civil. O conceito de “desconformidade” daquele diploma é mais abrangente do que o “defeito” previsto no regime do contrato de compra e venda civil.

Não aderimos também à argumentação do TRP quando invoca o conhecimento do facto no momento de entrega do bem para afastar a existência de uma desconformidade relevante (nos termos do art. 3.º-2 do DL n.º 67/2003). É que, como vimos, foi precisamente no momento de entrega do carro que o conteúdo do contrato se alterou/clarificou e em que se constituiu uma obrigação de entrega (da segunda chave) complementar.

Concluímos, portanto, que se o TRP houvesse entendido estar perante um contrato de consumo, deveria considerar existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado entre as partes, nomeadamente porque um dos elementos do objeto do contrato, a segunda chave, não havia sido entregue.

O que ficou dito não implica que se defenda a legitimidade do exercício de resolução, como melhor veremos no ponto 3).

3. Direito de resolução do contrato em casos de “incumprimento insignificante”

Como vimos, o comprador do carro pretendia ver reconhecido judicialmente o direito de resolução do contrato, alegando o incumprimento da obrigação de entrega da segunda chave do carro como fundamento. Considerando tal pedido improcedente, o tribunal entendeu que o incumprimento de tal obrigação acessória era insignificante no contexto global do contrato, não admitindo um remédio tão drástico (arts.  802.º-2 e 762.º-2  do CC). Salientou também que o vendedor não se encontrava ainda em incumprimento definitivo por não ter sido convencionado prazo para o prazo para a entrega da chave nem ter sido realizada a interpelação admonitória (arts. 805.º- 1 e 2-a) e 808.º CC), nem tão pouco se poderia alegar a perda objetiva de interesse na prestação devido ao furto do carro ocorrido na pendência da situação de mora do vendedor, na medida em que o artigo 808.º CC exige que essa perda de interesse seja resultado da própria mora e não de um evento exógeno, como é o caso (furto do carro).

Aderindo no essencial à fundamentação do tribunal, interessa-nos perceber se a solução seria idêntica caso fosse aplicável o DL n.º 67/2003 (que, como vimos no ponto 1), não era).

Ora, a resposta à pergunta parece-nos ser positiva. Ainda que entendamos, como explanado no ponto 2), existir uma desconformidade entre o bem entregue e o convencionado, não podemos deixar de concordar que, no contexto global do contrato, tal desconformidade seria mínima.

Ora, ainda que não exista qualquer hierarquia entre os direitos conferidos ao consumidor pelo art. 4.º do DL n.º 67/2003, seria manifestamente exagerado recorrer à resolução do contrato para reagir a tão mínimo incumprimento, configurando-se tal pretensão como abuso de direito (nos termos dos arts. 4.º-5 do DL 67/2003 e 334.º do CC).  Assim, parece-nos que seria mais adequado ao caso a redução do preço pago pelo comprador correspondente ao preço de aquisição de uma segunda chave.

Notas

(1) Acórdão TJUE de 04-06-2015, no processo C-497/13