Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia

Doutrina

Embora estejamos já no fim do primeiro trimestre de 2025, mantém-se especialmente urgente realizar uma reflexão sobre o que podemos esperar do resto do ano, e que espectativas devemos ter do futuro, em termos de política europeia e, em especial, que política é vamos ter para a proteção dos consumidores e o Direito Europeu do Consumo.

2024 foi um ano de fim de ciclo[1], com as eleições europeias em junho, novo Parlamento Europeu em julho, a tomada de posse da nova Comissão Europeia Von der Leyen 2.0 em dezembro, eleições presidenciais americanas em novembro e nova Administração Trump em janeiro.2025 marca o início de um novo ciclo[2], bastante desafiante, cheio de incertezas e de desafios.

Esta reflexão foca-se em dois temas nucleares, que serão abordados em dois textos neste blog: a) o novo foco na competitividade europeia pela Comissão Europeia; b) expectativas para a proposta do Digital Fairness Act, considerando os resultados do Digital Fairness Fitness Check.

Mudanças no Ar – o novo foco na competitividade europeia

Em setembro, foi publicado o relatório “The future of European competitiveness”, preparado pelo anterior presidente do BCE (“salvador do Euro”) e ex-primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, “encomendado” pela Comissão em 2023. O “Relatório Draghi”, como ficou conhecido, analisa a atual situação macroeconómica europeia, diagnosticando vários fatores e sintomas para a perda da competitividade e declínio face aos Estados Unidos e a China, propondo ainda uma série de recomendações estratégicas que visam inverter este processo e relançar a União Europeia enquanto bloco económico.

O relatório é extenso, divido em duas partes: a parte A, com análise inicial e estudo macroeconómico, com 69 páginas, enquanto a parte B, com 328 páginas, contém uma análise aprofundada setorial com recomendações de medidas e reformas. As recomendações visam essencialmente um maior aprofundamento das competências (e mesmo alguma federalização) da União Europeia. O relatório foca-se na necessidade de eliminar barreiras no mercado único, simplificar a carga regulatória sobre as empresas, “desbloquear” o movimento de capitais no espaço europeu, promover a consolidação de alguns grupos económicos europeus em certos sectores e a reindustrialização (mantendo um plano conjunto para descarbonização e transição climática), apostando na inovação tecnológica (destaque para a IA) e assegurando a segurança e soberania europeia.

As reações ao relatório foram diversas, entre a recetividade do diagnóstico geral e a controvérsia quanto a certas medidas, como a emissão de mais dívida comum europeia (oposta imediatamente pelos Países Baixos e Alemanha). Várias das reformas propostas dividiram assim Estado Membros e partidos europeus. Quanto à política em Direito do Consumo, várias das medidas foram elogiadas (especialmente em matéria de energia), enquanto outras levaram a críticas[3]. A BEUC manifestou preocupação quanto ao possível “relaxar” das normas de direito da concorrência para permitir a consolidação de certos mercados, como o das telecomunicações. Muitas vezes o direito do consumo, a regulação de segurança de produtos e a regulação digital são apontados como sendo excessivas, como um entrave ao crescimento das empresas (críticas semelhantes são também formuladas quanto ao modelo social europeu, em política fiscal ou laboral).

Surge assim a questão: até que ponto é que podemos assegurar o bem-estar dos consumidores sem sacrificar também a competitividade económica? Será possível compatibilizar ambos?

As instituições europeias, encabeçadas pela nova Comissão Europeia parecem pensar que sim. Muitas das principais recomendações do relatório foram integradas nos compromissos políticos dos comissários no seu escrutínio pelo Parlamento Europeu. Os primeiros resultados estão a começar a surgir.

No final de janeiro a Comissão publicou assim o seu primeiro grande documento programático, o “EU Compass to regain competitiveness and secure sustainable prosperity” (Bússola da Competitividade). A Comissão assume assim uma estratégia de investimentos em sectores estratégicos, na inovação, descarbonização, e uma aposta na simplificação e coordenação das normas aplicáveis.

Competitividade e Proteção de Consumidores

Quanto a medidas e políticas para o direito do consumo, ainda vamos ter de esperar um pouco mais, já que segundo o programa da Comissão para 2025 (“work programme 2025” e anexos), a “2030 Consumer Agenda” (que vai incluir “action plan for consumers in the Single Market”) só deverá ser publicada no último trimestre de 2025, sendo que deverá ser aberta uma consulta pública para este no segundo trimestre.

Ainda assim, a Comissão publicou já a comunicação “A comprehensive EU toolbox for safe and sustainable e-commerce” (acompanhado de um Q&A), em que delineia as suas prioridades e iniciativas para o comércio eletrónico, uma das áreas fundamentais com importância crescente.

É assumido que o mercado interno da UE é o mercado com as normas que mais protegem os consumidores e asseguram a segurança dos produtos no mundo, mas que estas normas e standards são frequentemente desrespeitadas e violadas no domínio do comércio eletrónico, em especial nas grandes plataformas online. Entre estas destacam-se as plataformas chinesas Temu[4] e Shein, as quais estão a ser alvo de investigações e ações judiciais, em especial para se perceber como estas plataformas têm permitido que uma “avalanche” de produtos de baixo preço, baixa qualidade, contrafeitos e perigosos para seres humanos (em especial crianças), inundem o mercado europeu. Além de representarem uma ameaça à segurança e bem-estar dos consumidores (e dos óbvios problemas no âmbito de sustentabilidade dos produtos e possíveis violações de direitos humanos no seu fabrico), a Comissão Europeia também realça os prejuízos que vendedores europeus sofrem com esta concorrência desleal, por terem de respeitar as normas e standards europeus.

Segundo esta comunicação, a solução não é diminuir a carga regulatória que consequentemente reduz a proteção dos consumidores, mas sim assegurar que as normas são devidamente cumpridas, impedindo a entrada de produtos desconformes e responsabilizando as plataformas. Desta forma, a comunicação propõe: a) uma reforma aduaneira, com um reforço dos controlos, fim da isenção de direitos para as encomendas cujo valor seja inferior a 150 euros e novas taxas sobre produtos importados para a UE através do comércio eletrónico, b) promover o enforcement dos novos diplomas para responsabilizar as plataformas online, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act, o novo Regulamento de Segurança dos Produtos, o Regulamento de Cooperação entre Autoridades no domínio do Consumo, c) utilizar novas ferramentas digitais para a supervisão e para melhorar a cooperação, d) adotar um plano de ação para os diplomas em proteção ambiental, d) capacitar os consumidores e e) reforçar a cooperação internacional.

Esta primeira comunicação da Comissão constitui um primeiro sinal da sua política em Direito do Consumo, em conjunto com os já referidos compromissos políticos dos comissários, em especial da Vice-Presidente Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os seus planos para uma proposta de um Digital Fairness Act baseado nas conclusões do Digital Fairness Fitness Check. Parece que a política em Direito Europeu do Consumo não será (muito) alterada no sentido de reduzir a proteção dos consumidores europeus. Embora haja um push quanto ao quadro regulatório digital, parece que a Comissão pretende continuar a complementar e aprofundar (talvez mais timidamente) o Direito do Consumo (em especial online) e em reforçar o seu enforcement.[5]

Quando a questão da competitividade europeia é levantada quanto à proteção dos consumidores, a abordagem (que também já tinha sido apontada no relatório do Digital Fairness Fitness Check) aparenta não passar necessariamente pela “desregulação”, mas pela “simplificação” do ordenamento jurídico, para melhorar a sua consistência (interna e externa) de forma a reduzir os custos de compliance para os agentes económicos, sem reduzir os direitos dos consumidores.

Porém, é necessário realçar que estes pressupostos podem mudar drasticamente.

Considerando apenas os sinais que vêm de dentro da Comissão, parece que outras matérias (como obrigações ambientais, de sustainable finance, corporate due dilligence) não vão ter tanta “sorte”, existindo um verdadeiro “push” para desregular. O work programme 2025 prevê vários diplomas de “simplificação” até ao final deste ano, incluindo no domínio “digital”, enquanto vários procedimentos legislativos anteriores foram “cancelados”, com a Comissão a retirar as suas propostas. Entre estes, é inevitável referir a proposta de diretiva relativa à responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial (AI Liability Directive).

Brussels Effect vs Trump Effect

Finalmente, é necessário referir o “elefant in the room” subjacente à afirmação de que 2025 é o início de um novo ciclo “bastante desafiante, cheio de incertezas e desafios”: a nova administração Trump e as suas políticas comerciais e regulatórias.

Sem entrar em pormenores e análises geopolíticas, é necessário apontar que esta administração mudou substancialmente, radicalmente, a postura americana para a proteção dos consumidores – e que esta mudança também terá impacto nos consumidores europeus. Desde os planos de desmantelamento do Consumer Financial Protection Bureau, aos discursos do Vice Presidente JD Vance na campanha eleitoral e agora no AI Summit 2025 em Paris, tornou-se explícito e completamente incontornável com o memorando Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House.

Neste memorando, a Administração Trump afirma que, se governos ou entidades reguladoras de outros Estados e blocos económicos aplicarem coimas, sanções, taxas ou outros tipos de penalizações discriminatórias, desproporcionadas ou destinadas a transferir fundos ou propriedade intelectual significativos sobre empresas americanas, a Administração irá aplicar tarifas e outras medidas retaliatórias em resposta.

Neste momento, estamos perante um confronto direto entre o “Brussels Effect” e o “Trump Effect”, e ainda não é clara qual vai ser a resposta europeia[6]. Por exemplo, será que as investigações em curso sobre X (antigo Twitter) por violações do Digital Services Act irão continuar? Não nos podemos esquecer de que, a nível nacional, as entidades reguladoras têm de ser independentes, enquanto, a nível europeu, a Comissão é um ator político.

Conclusões

2025 constitui o início de um novo ciclo, num número quase infindável de matérias e facetas.

Ainda não é inteiramente claro como vai ser a política europeia de Direito de Consumo este ano e no resto do mandato 2024-2029, mas já temos algumas pistas. A nova Comissão Europeia tem sido muito influenciada pelo Relatório Draghi e pela necessidade de desbloquear a competitividade europeia, com a redução/simplificação da carga regulatória. Até ao final do ano deverá ser publicado a 2030 Consumer Agenda, que, incluindo um “action plan for consumers in the Single Market”, deverá assim incluir mais indicações e planos para a proposta do Digital Fairness Act, que provavelmente ficará para 2026[7]. Em alternativa (mas muito menos provável) poderá ser parte do pacote legislativo “Digital”, embora o objetivo deste seja a simplificação da legislação digital.

Quanto à aplicabilidade extraterritorial dos diplomas europeus em regulação digital às Big Tech europeias, desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Digital Services Act, o Digital Markets Act e o AI Act, subsistem ainda dúvidas sobre como a União Europeia irá reagir:  o Brussels Effect irá vingar ou estas empresas escaparão impunes?

Fontes

Relatório Draghi The Draghi report on EU competitiveness

Digital Fairness Act Digital fairness – fitness check on EU consumer law

Briefings ao PE dos membros do conselho europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2025/700896/IPOL_BRI(2025)700896_EN.pdf

Competitive compass EU Compass to regain competitiveness

Commission announces actions for safe and sustainable e-commerce imports Safe and sustainable e-commerce imports

Questions and answers on the E-commerce Communication Q&A on the E-commerce Communication

Commission work programme 2025 – European Commission

Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House


[1] É necessário referir que ainda ficaram pendentes para 2025 alguns procedimentos legislativos que não ficaram concluídos no último ciclo, nomeadamente a Diretiva Green Claims, a nova Diretiva de Resolução Alternativa de Litígios, nova Diretiva dos Direitos dos Passageiros Aéreos  e, em segurança de produtos, o novo Regulamento de Segurança de Brinquedos.

[2] Foram aprovados em 2024 os seguintes diplomas: a Diretiva de capacitação dos consumidores para a transição ecológica, a nova Diretiva de Responsabilidade do Produtor, a Diretiva do Direito à Reparação, o Regulamento de descontinuação da plataforma europeia de resolução de litígios em linha (ODR), o Regulamento dos requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis, e claro, o Regulamento de Inteligência Artificial.

[3] Outras ONG, na área da proteção do ambiente, também apontaram críticas a certas propostas sobre industrialização.

[4] A investigação sobre a Temu partiu da queixa promovida por um consórcio liderado pela BEUC, na ação “Taming Temu”.

[5] Por exemplo, podemos dar destaque aos resultados do último sweep realizado pela Comissão e as autoridades nacionais, que detetaram que quase metade dos vendedores de bens em segunda mão não cumprem com as suas obrigações à luz do Direito do Consumo, publicados no início de março. Nearly half of second-hand online traders fail to correctly inform consumers of their return rights

[6] A BEUC já apelou a que a União Europeia não se deixe intimidar, que continue firme na defesa dos consumidores europeus.

[7] Segundo declarações recentes do Comissário McGrath, deverá haver uma consulta pública e a proposta será apresentada a meio de 2026 (no evento: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath | CSIS Events transcrição das declarações: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath

Direitos televisivos no futebol português: principais desafios e problemas para o consumidor

Doutrina

O futebol em Portugal é já, desde há muito tempo, uma das principais indústrias de entretenimento do nosso país, gerando receitas perto da casa dos 1000 milhões de euros por época e representando 0,26% do PIB nacional. Mais do que meros números, o futebol enquanto tal é, talvez, um dos pilares da cultura portuguesa e podemos até dizer que, de uma forma ou de outra, atinge todos os portugueses.

No entanto, ao analisarmos mais ao detalhe algumas das principais áreas onde o futebol chega, podemos identificar problemas ao nível do Direito do Consumo, nomeadamente na questão dos direitos televisivos para a transmissão do mesmo.

Sendo este um espetáculo que deve ser primordialmente voltado para o consumidor, parece-nos relevante debater estes problemas e acima de tudo, apresentar soluções que permitam não só dignificar o consumidor, como também fazer cumprir as normas da Concorrência e de Direito do Consumo, muitas vezes, postas em segundo plano neste âmbito.

Ao contrário do que sucede nas principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Alemanha), a titularidade dos direitos televisivos em Portugal pertence aos clubes ou às sociedades desportivas (SAD’s ou SDUQ’s) participantes na competição. Assim, cada uma tem a liberdade de comercializar esses direitos a qualquer operador, sendo que o mais comum é ao canal Sport TV. Desde 2013, os jogos do Sport Lisboa e Benfica no Estádio da Luz são transmitidos através de um canal próprio, a Benfica TV.

Este modelo de comercialização é, no entanto, alvo de críticas, tendo mesmo levado a Autoridade da Concorrência (AdC) a emitir, em janeiro de 2019, uma recomendação ao Governo para que os direitos televisivos passassem a ser comercializados de forma centralizada, seguindo o “modelo europeu” em que estes são vendidos através de um leilão, possibilitando uma melhor regulamentação que, naturalmente, traz vantagens para o consumidor, permitindo maior concorrência ao nível dos canais desportivos e preços ajustados ao valor de mercado.

De tal modo é assim que, a 22 de março de 2021, foi publicado o Decreto-Lei n.º 22-B/2021, que, na sequência da recomendação da AdC, determina que, a partir da época desportiva 2028/29, os direitos televisivos passem a ser comercializados de forma centralizada. Temos esperança de que muitos dos problemas que iremos discutir de seguida sejam, então, plenamente resolvidos.

Em primeiro lugar, salientam-se os acordos celebrados entre vários clubes da Liga Portugal com os grupos NOS e MEO (Altice), nomeadamente por parte dos “três grandes” (Sporting, Benfica e Porto), que pelo número de adeptos são, sem dúvida, os que representam maior peso económico. Esses acordos incluem, entre outros direitos, os de transmissão televisiva.

Ora, na perspetiva da AdC, tanto a duração (pelo menos 10 épocas desportivas) como a abrangência (NOS e Altice têm cerca de 80% deste mercado) destes acordos suscita problemas ao nível da concorrência, pois torna-se mais difícil para outros concorrentes adquirir direitos de transmissão, limitando a entrada no mercado nacional de canais desportivos que, possivelmente, até refletiriam melhor as preferências dos consumidores.

Desde que estes acordos foram celebrados, não houve qualquer alteração na transmissão dos jogos da Liga Portugal, mesmo com a entrada de um novo concorrente no mercado, a DAZN Portugal. Estes continuam quase em exclusivo a ser transmitidos pela Sport TV (com a exceção da Benfica TV).

Assim, no âmbito destes acordos, poderemos estar perante um abuso de posição dominante por parte destes agentes económicos, o que é vedado pelo art. 11.º-1 da Lei da Concorrência (Lei 19/2012) e, naturalmente, afeta o previsto no arts. 3.º-e) e 9.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor, que consagram o direito à proteção dos interesses económicos do consumidor. A falta de concorrência pode levar à prática de preços excessivos.

Em segundo lugar, cumpre ainda discutir de que forma a estrutura acionista da Sport TV pode não só limitar a concorrência, como também perpetuar políticas de alinhamento de preços, mantendo-os artificialmente elevados. Este é também um dos problemas identificados pela AdC na recomendação já referida neste artigo.

Sendo este canal detido de forma igualitária pelas três principais operadoras de televisão em Portugal, estas naturalmente terão interesse em que os jogos da Liga Portugal sejam transmitidos na Sport TV, pelo que poderemos assistir a políticas anticoncorrenciais, com a possibilidade de as operadoras dificultarem a entrada no mercado de canais desportivos concorrentes e ainda evitarem competir entre si pela aquisição dos direitos, podendo, desta forma, praticar políticas de alinhamento de preços.

Assim, poderemos estar a falar de uma prática comercial desleal, proibida pelo DL 57/2008, por parte das operadoras a atuar em Portugal, na medida em que parece haver uma distorção do comportamento económico do consumidor, violando o disposto no art. 5.º-1 do diploma. O consumidor não tem outra opção que não seja pagar valores excessivamente elevados para poder assistir aos conteúdos desportivos.

Além de compartilharem a estrutura acionista do principal canal desportivo português, as operadoras firmaram um acordo entre si que permite a partilha dos direitos de transmissão dos jogos adquiridos individualmente, ou seja, a NOS que celebrara um acordo com o Sporting e com o Benfica disponibilizou à MEO (Altice) os direitos, e o mesmo, de maneira inversa, em relação ao Porto.

Este acordo, a curto prazo, parece beneficiar os consumidores, na medida em que não precisam de trocar de operador para assistir a determinados jogos.

Porém, a longo prazo, surgem problemas, também identificados pela AdC, tais como, a redução da concorrência entre os operadores. Como os jogos são partilhados, não há qualquer incentivo para que um tente superar o outro, a possível inflação dos preços por não haver qualquer tipo de disputa real e ainda a dificuldade, mais uma vez, para a entrada de novos concorrentes no mercado, prejudicando os consumidores, pois há uma clara manutenção de preços acima do valor de mercado nos pacotes desportivos. Nesta situação, tanto estes acordos como a questão da estrutura acionista da Sport TV parecem ir contra o disposto no art. 9.º-1 da Lei da Concorrência, que proíbe acordos e práticas concertadas por parte de empresas, neste caso, das operadoras a atuar em Portugal.

Em suma, a falta de concorrência e os preços elevados podem ter consequências negativas, não só para os consumidores como também para as próprias operadoras e para a indústria do futebol, na medida em que aumenta o recurso dos consumidores a plataformas ilegais para assistir aos jogos. Este é, aliás, um problema atual, como demonstra um estudo do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), que revelou que, em junho de 2024, cerca de 17% dos portugueses acederam a conteúdos desportivos por meios ilegais, um número preocupante para um setor que pretende crescer e desenvolver-se.

Para evitar esta tendência e garantir um mercado mais equilibrado, é essencial reforçar a fiscalização sobre as operadoras e assegurar que os consumidores paguem valores justos pelo acesso aos conteúdos desportivos. A implementação do modelo centralizado em 2028/29 poderá constituir um passo positivo, mas, até lá, medidas regulatórias mais rigorosas e eficazes podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do sistema atual.

Do Luxo ao Lixo ao Luxo: O Upcycling e seus Desafios para o Direito das Marcas

Doutrina

O upcycling tem vindo a ganhar destaque como uma nova filosofia de consumo e uma forma inovadora de expressão individual. Ao contrário da reciclagem tradicional, que envolve a transformação de resíduos em matéria-prima para a criação de novos produtos, o upcycling procura dar uma nova vida a bens já existentes, acrescentando valor e muitas vezes alterando radicalmente a sua estética ou funcionalidade. Embora frequentemente associado a um movimento criativo, o upcycling também pode ser uma atividade comercial, com cada vez mais designers individuais a especializarem-se nesta prática e a transformá-la em pequenos negócios.

No mundo da moda, essa tendência tem sido particularmente forte, atraindo grande atenção do público. Um exemplo é a designer mexicana Luisa Hurtado que transforma em bolsas os jeans das mais diversas marcas, tendo vídeos sobre esta arte que ultrapassam 34 milhões de visualizações. Esta nova abordagem à moda sustentável tem atraído cada vez mais consumidores, que veem no upcycling não apenas uma alternativa ecológica, mas também uma forma de adquirir peças únicas e exclusivas.

Do ponto de vista legal, um dos principais desafios do upcycling prende-se com o potencial conflito com os direitos das marcas originais. Muitas empresas argumentam que a reutilização dos seus produtos – sobretudo quando mantém seus elementos identificadores, como logotipos – constitui uma forma de free riding, ou seja, uma apropriação indevida do prestígio da marca para promover um novo produto sem que a empresa original tenha qualquer controlo sobre ele.

O problema central está na função essencial da marca: garantir a origem e a qualidade dos bens que coloca no mercado. Se, por exemplo, um criador independente reutiliza jeans da Levi’s para criar bolsas com este logo aparente, mas não há nos novos produtos um controlo de qualidade da marca Levi’s, estará o criador a enganar o consumidor sobre a origem daquele bem? As empresas podem afirmar que tais práticas induzem o consumidor a erradamente presumir que o novo produto tem a chancela da empresa, assim comprometendo a integridade da marca. Mas será que esta alegação se aplica a todos os casos?

Muitos dos designers que trabalham com upcycling não tentam esconder a transformação que realizam. Pelo contrário, fazem questão de documentar todo o processo, mostrando claramente que os produtos foram alterados e dando ênfase ao valor artístico e sustentável do upcycling. Além disso, muitos colocam a sua própria assinatura nos produtos, reforçando a ideia de que aquele bem é um item “upcycled” e não uma criação original da marca representada pelo logo que carrega. Em Portugal, a legislação já prevê a importância da comunicação clara ao consumidor no artigo 8.º da Lei de defesa dos Consumidores. Se comunicação do upcycling for suficientemente clara e inequívoca, ainda se pode falar em uma probabilidade de confusão por parte do consumidor? A resposta ainda não é clara, não existindo até o momento decisões dos Tribunais Portugueses ou do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o tema.

Apesar da incerteza jurídica, muitos académicos defendem que o upcycling não deve ser considerado uma violação dos direitos de propriedade intelectual (PI), seja dos direitos de autor ou do direito da marca. As suas análises são fundamentadas e consolidadas, sustentando que a PI não deve ser uma barreira à criatividade e, principalmente, às iniciativas que promovam a economia circular. O contexto regulatório europeu também aponta nessa direção. A Waste Framework Directive e a nova EU Strategy for Sustainable and Circular Textiles incentivam fortemente a reutilização de materiais e a redução de resíduos, alinhando-se com os princípios do upcycling. Talvez seja necessária uma interpretação também do direito das marcas de modo a não se tornar um obstáculo a estas práticas. É uma discussão que ainda está em aberto, mas é inegável que o upcycling representa um passo importante para um modelo de consumo mais sustentável. Desde que as práticas sejam transparentes e não induzam o consumidor em erro, o reaproveitamento criativo de materiais pode desempenhar um papel fundamental na economia circular, reduzindo desperdício e incentivando uma moda mais responsável.