Uma aldeia deslumbrante, um restaurante idílico e uma prática duvidosa

Doutrina

A história passa-se numa pequena aldeia medieval no centro de Portugal, uma aldeia deslumbrantemente preparada para receber todos os que a visitam. O cenário do restaurante é idílico, dentro das muralhas, com vista para o que outrora protegia o lugar dos invasores. O funcionário é simpático, sempre preocupado com o cliente, entretido, conversador na medida adequada. O ambiente é tranquilo e confortável.

No final da refeição, cumpridas as obrigações das partes, surge um pedido meio envergonhado, mas determinado e estruturado. Pode fazer uma crítica do restaurante na plataforma X, uma das mais famosas do mercado. Só se quiser, claro. E não custa nada. O papel plastificado apresentado ao cliente tem um código que é ativado com a simples aproximação do computador que todos trazemos nos nossos bolsos ou malas e que ainda continuamos a chamar telemóvel.

É certo que esta prática é recorrente, que este é apenas um exemplo especialmente significativo por surgir num contexto de certa forma inesperado. O cliente, que nunca ou raramente faz críticas ou comentários em plataformas online, sente, pela relação, curta, mas próxima, que estabeleceu com a pessoa que o atendeu, que não pode negar-se. Poder, se calhar, até pode, mas não consegue. Invocar os princípios num momento de relaxamento, de diversão, de descanso, é mais disruptivo do que colocar umas estrelas nuns espaços virtuais criados para o efeito. Ou fingir que coloca, se, entretanto, o funcionário se distrair um pouco. Até porque é preciso ainda fazer o login na plataforma, confirmar que se é humano, esperar.

Qual é o valor desta crítica? Não é espontânea, dificilmente será genuína, pensada, estruturada, feita por comparação com outros restaurantes, outras experiências. Isto porque é feita à pressa, sob pressão, imposta pelo momento, um momento tranquilo, relaxado. Vai ser enviesada, desde logo, por existir, mas também pela forma como foi feita. E vai influenciar, à sua escala, a decisão de outras pessoas. A crítica confunde-se hoje com a publicidade, não é feita por especialistas e, por isso, é subjetiva e motivada cada vez mais por outros fatores que não a qualidade – ou a sensação de qualidade de quem a faz.

A empatia será um dos fatores mais relevantes das críticas que são feitas por consumidores em plataformas online. Num restaurante, o atendimento, muito ligado com a empatia, será um aspeto importante, mas outros, como a qualidade dos ingredientes, a criatividade e originalidade dos pratos confecionados, a qualidade da confeção, a variedade, etc., são igualmente relevantes e tendem a não relevar.

Aquela crítica será também feita sob pressão, sem um pedido prévio do cliente, que é surpreendido num local em que não esperava sê-lo. O cliente pode estar preparado, num restaurante, para uma insistência educada e não exagerada no sentido de comer mais uma sobremesa ou de pedir uma segunda, ou terceira, garrafa de vinho. Não está, no entanto, preparado para ter de avaliar a experiência, para o mundo, assim que a refeição termina.

Trata-se de uma prática agressiva. Acresce que o cliente, por um lado, terá de fornecer dados a terceiros e, por outro lado, não beneficia de qualquer contrapartida. A existência de contrapartida não tornaria a prática lícita, uma vez que enviesaria ainda mais a crítica, mas teria, pelo menos, uma vantagem para o consumidor pela pressão a que é sujeito.

Anoitece na aldeia, a sua beleza torna-se ainda mais mágica ao olhar de quem passa, o processo digestivo segue o seu rumo e a internet tem mais uma crítica que não deveria ter, mais dados que não existiriam se não fosse tão importante para o negócio fomentar a criação. E assim continuamos a alimentar um sistema que tende a proporcionar menos momentos tranquilos e relaxados.

Preços Dinâmicos: Justiça de Mercado ou Prejuízo para o Consumidor?

Doutrina

A prática de preços dinâmicos, cada vez mais comum em setores como o entretenimento, onde bandas como os Oasis popularizaram a “venda” de bilhetes a preços flutuantes, tem gerado críticas e levantado preocupações sobre a sua transparência. Esta questão, identificada como uma ameaça à confiança dos consumidores, tem sido destacada pela Euroconsumers, organização dedicada à defesa dos direitos dos consumidores.

A estratégia de preços dinâmicos consiste na adaptação contínua dos valores cobrados por bens e serviços, ajustando-os de forma personalizada às circunstâncias do mercado. Este sistema utiliza tecnologia avançada, como algoritmos de inteligência artificial, para determinar preços com base em elementos como o comportamento dos consumidores, as tendências de compra em tempo real, a duração de campanhas promocionais ou até o perfil geográfico dos utilizadores. Durante a Black Friday, muitos consumidores deparam-se com variações inesperadas nos preços, frequentemente sem compreender os critérios aplicados pelos algoritmos que os determinam.

Por exemplo, os preços podem ser reduzidos em horários de menor procura, como durante a madrugada, para incentivar compras em momentos menos tradicionais. Por outro lado, em períodos de maior tráfego, como antes de eventos desportivos ou lançamentos de novos produtos, os valores podem subir. Empresas tecnológicas e plataformas digitais utilizam esta abordagem para maximizar a eficiência das vendas e reforçar a competitividade no mercado global.

Embora os preços dinâmicos possam beneficiar as empresas, permitindo-lhes adaptar-se rapidamente às flutuações do mercado e maximizar os seus lucros, este modelo tem levantado dúvidas no que diz respeito à transparência e à lealdade para os consumidores. A falta de clareza sobre os critérios que determinam os preços e a possibilidade de preços elevados em momentos de alta procura são algumas das questões que têm sido levantadas por organizações de defesa dos direitos dos consumidores.

O caso tornou-se conhecido em setembro, quando os bilhetes para os concertos da banda Oasis, na Irlanda e no Reino Unido, foram “vendidos” por preços que ultrapassaram os 400€, embora o valor inicial na Irlanda tivesse sido de 86€. A situação gerou desconforto entre os consumidores. Muitos só tomaram conhecimento do preço real após horas de espera em filas virtuais, enfrentando dificuldades para entender as variações de preço durante o processo. Os preços dinâmicos, geridos por algoritmos avançados, estão a transformar o mercado, mas também a levantar preocupações quanto aos seus impactos nos consumidores.

No âmbito do direito substantivo, a prática de preços dinâmicos é legal, ao abrigo da legislação de proteção dos consumidores da União Europeia.

Em 2021, a Comissão Europeia publicou uma orientação sobre a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que menciona as condições sob as quais os comerciantes podem ajustar os preços de forma dinâmica (ponto 4.2.8). A Comissão destacou que, apesar da liberdade dos comerciantes em alterar os preços, é imprescindível que forneçam informações claras e acessíveis sobre o custo total do produto ou serviço, incluindo impostos e encargos adicionais. Esta transparência deve ser garantida especialmente quando o preço não pode ser definido com antecedência, devido às características variáveis do produto ou serviço.

Além disso, a Comissão alertou que práticas como o aumento de preços durante o processo de compra, sem conceder um tempo adequado para que o consumidor possa concluir a transação, podem ser consideradas desleais. Tais práticas prejudicam a capacidade do consumidor de tomar decisões informadas e podem distorcer o seu comportamento. Este tipo de abordagem pode ser classificado como uma violação das obrigações de boa-fé e diligência profissional previstas pela legislação europeia, afetando a confiança do consumidor no mercado.

A Diretiva dos Direitos dos Consumidores (transposta para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) permite o uso de preços dinâmicos, desde que seja garantida total transparência para os consumidores. Estes devem conseguir ter acesso, antes de concluírem a transação, de forma clara e antecipada, às informações completas sobre o valor total a pagar, englobando todos os impostos e custos adicionais. O Artigo 6.º determina que deve ser apresentado o valor total do preço ou, caso isso não seja viável, os parâmetros utilizados para o seu cálculo. No caso de preços dinâmicos, as empresas devem comunicar de forma clara e antecipada as variações de preço e os parâmetros que influenciam essas mudanças. É essencial que tais práticas não induzam os consumidores em erro ou criem pressões indevidas, garantindo que possam tomar decisões informadas antes de concluir a transação.

Em suma, a prática de preços dinâmicos, embora legal e cada vez mais comum, exige maior atenção às questões de transparência e equidade para garantir a proteção dos consumidores. O equilíbrio entre a inovação empresarial e o respeito pelos direitos dos consumidores é essencial, especialmente em situações que podem influenciar o comportamento económico de forma indevida. Neste contexto, a questão poderá ser abordada nas novas medidas legislativas da União Europeia para reforçar a proteção do consumidor no ambiente digital, promovendo um mercado mais justo e transparente.