Piscina com fuga de água – Comentário ao Ac. do TRL, de 27/04/2021

Jurisprudência

O Código Civil (CC) prevê um regime para o contrato de empreitada nos artigos 1207.º e seguintes. A empreitada consiste num contrato de prestação de serviços (cfr. artigo 1155.º), através do qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante o pagamento de um preço.

O Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, disponível aqui, transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. Trata-se de normas especiais relativamente às regras do CC, pelo que afastam as que se mostrarem incompatíveis com o seu campo de aplicação.

De acordo com o artigo 1.º-A, o DL referido aplica-se aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, esclarecendo que consumidor é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, e da alínea a) do artigo 1.º-B do DL.

Com o Decreto-Lei nº. 84/2008, de 21 de Maio, a aplicação do DL 67/2003 alargou-se, “com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada”, conforme o n.º 2 do artigo 1.º-A.  Deste modo, este diploma aplica-se aos contratos de empreitada entre aqueles que fornecem bens de consumo no exercício de uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios e quem adquira bens de consumo destinados a uso não profissional. Aos restantes contratos de empreitada, aplica-se o disposto no Código Civil.  

O DL manifesta uma protecção maior ao consumidor, consagrada, aliás, no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, considerado a parte mais fraca, por ter menos conhecimento na matéria, e, por conseguinte, o Direito acautela a sua posição contratual, beneficiando-o com presunções de não conformidade. No caso dos contratos de empreitada, o consumidor será o dono da obra.

Recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa, a 27 de Abril de 2021, pronunciou-se sobre um contrato de empreitada e respectiva conformidade da obra, que pode consultar aqui.

No caso, a Autora, no âmbito da sua actividade profissional de construção de piscinas, celebrou com o Réu um contrato de empreitada, não tendo este pago o valor total da obra uma vez que a mesma não estava conforme pois o nível da água descia abaixo do nível da pedra, provocando a perda água da piscina. 

Apesar de terem sido denunciados, os defeitos nunca foram reparados. Segundo a Autora, o alegado defeito é consequência de ter sido o Réu a escolher a pedra de transborda da piscina, contra as suas indicações. Apesar de não ser recomendado, o Réu quis alterar a pedra a usar.

Não estando a obra adequada ao seu uso e não apresentando as qualidades e o desempenho habituais, o DL faz presumir a não conformidade da obra (cfr. artigo 2.º n.º 2 DL).

Como explica o TRL, a presunção “abarca genericamente as situações de “vícios” e “desconformidades” da obra, a que aludem os artigos 1208.º e 1218.º, n.º 1 do CC” (…) O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das prestações daquele tipo; a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado”.

Em caso de não conformidade da obra, o consumidor pode optar pela reparação, pela sua substituição, pela redução adequada do preço ou pela resolução do contrato, não impondo o DL qualquer ordem hierárquica na escolha, apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito e pela manifesta impossibilidade – artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/2003.

Através de perícias, provou-se a existência de irregularidades que permitiam a fuga de água. A obra não satisfaz, portanto, a sua função normal, desviando-se do objectivo contratual negociado pois a deficiente execução da obra põe em causa a funcionalidade base da piscina por permitir a fuga da água[1].

Não se provou, porém, que a Autora tenha comunicado ao Réu a consequente e provável fuga de água com a aplicação daquela pedra, nem que a pedra usada tenha sido uma imposição do réu. Importa ter presente que imposição e mera opinião são situações diferentes para efeito de averiguação de responsabilidade.

O n.º 3 do artigo 2.º do DL clarifica que não existe falta de conformidade se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor. Ora, pela factualidade apurada, não foi esse o caso.

Com efeito, e como bem elucida o TRL, não pode deixar-se de exigir do empreiteiro, pelos conhecimentos técnicos que detém, que tivesse atentado e previsto os possíveis problemas que poderiam advir da utilização daquela pedra em particular. Mais, não deveria aceitar sem mais quaisquer sugestões do dono da obra, em regra, menos conhecedor.

O empreiteiro deve executar a obra acordada[2], com os seus conhecimentos e experiência, que o dono da obra provavelmente não tem. Ao optar por acolher a opinião deste, o empreiteiro não se exime de responsabilidade. Deve escolher a forma mais adequada para a execução da obra, tendo em conta as finalidades da mesma, não apenas objectivamente como considerando as finalidades que em concreto as partes tiveram em vista[3].

Julgou-se a Autora como a única responsável pelo defeito da obra.

Se assim não fosse, qualquer opinião dada pelo dono da obra, por mais desadequada que fosse, permitiria ao empreiteiro isentar-se de responsabilidade.

Para assim não ser, a Autora empreiteira teria que demonstrar que o material usado foi não apenas uma escolha do dono de obra, mas sim uma verdadeira exigência do mesmo.


[1] Pedro Martinez in Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 2001, página 33.

[2] Neste sentido, também o artigo 1208.º do CC.

[3] Com efeito, o defeito deve ser apreciado numa concepção objectiva, à luz do seu uso corrente, e subjectiva-concreta, cfr. João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, Coimbra, 2001, página 335.

Technological Free Zones and the Portuguese Regulatory Sandbox Legal Framework

Doutrina

Written by Yasmin Waetge (version in Portuguese here). Translated by Gabriela Santos.

The NOVA Consumer Lab resumes its activities after a short break with a renewed spirit to discuss and analyze the latest Consumer Law news. Today we bring up a brief analysis of the recently approved Technological Free Zones, considered a major step towards the promotion of foreign investment and national development.

Currently, the ever-increasing pace of technological innovation development requires governments to actively seek to understand the risks associated with this reality while setting out appropriate policies and guidelines to reap its benefits and protect consumers. Despite the legislative efforts, the fact is that the regulatory gap between reality and legal prescriptions has caused society, businesses, markets and even States to develop what some authors refer to as ‘regulatory uncertainty’ or ‘regulatory fear’.[1]

In this context, as well as a consumer protection measure, law operators have progressively witnessed the expansion of ‘Regulatory Sandbox’ as an alternative system for the current challenge of adapting this ‘new’ market regulation to the innovations that arise daily. Integrated in this environment, in a regulatory dialectic, businesses may enjoy a broad interaction with regulators for the controlled development of services and products. Thus, at a subsequent time and in a more secure conjecture, regulatory authorities will be able to decide “if-”, “how-” and “when-” to grant permanent licenses for the entrance and operation of such companies in the consumer market.

In a more integrative and comprehensive content-based approach, since 2020 the Portuguese government has been discussing the groundwork of the so-called ‘Technological Free Zones’ (ZLTs). In generic terms, this environment aims to be a general and cross-sector structure for the experimentation of innovative technologies. In other words, it would be a representation that corresponds to the ‘regulatory sandbox’ concept.

Initially, through Resolution of the Council of Ministers no. 29/2020[2], Portugal acknowledged its intention to establish a ‘common legal framework for demonstration and testing activities, in a real environment, of innovative technologies or solutions’, regardless of the sector. This feature of the Portuguese system sets it apart from the experiences of other countries that have resorted to this model to facilitate innovation in the economic realm, financial and insurance regulation. 

More recently, the Portuguese government approved and published in the Official Gazette of Portugal the legal framework for Technological Free Zones (ZLTs), laid down in Decree-Law no. 67/2021[3] of July 30, 2021, which establishes its regulatory regime and defines the governance model for promoting technology-based innovation through the creation of these zones.

The Decree-Law contains 4 chapters and 16 articles, many of which implemented by numerous subparagraphs. Notwithstanding some delay, the regulation’s enactment responds to the global trend of promoting innovation and increasing the transfer of scientific and technological knowledge in the economy. In addition, Portugal envisions in the creation of Technological Free Zones the possibility to enhance its attractiveness for innovation projects and foreign investment related to emerging technologies to the national market.

Aware of the emergence of new stakeholders in the global economy and trying to catch up on its oversight of the sector over the last few years, in comparison to the rest of the European Union, Portugal also announced in 2020 a set of measures to assist more than 2,500 startups based in the country to help them overcome the consequences of the COVID-19 pandemic. The businesses support package amounts to more than 25 million euros, with an average of 10,000 euros of financial aid for each startup.[4]

For instance, it is worth reminding that to a large extent it was precisely in the wake of the UK Financial Authority’s exquisite creation of a ‘regulatory sandbox’ in 2015 that Revolut emerged, now one of Europe’s most valuable FinTech.

Thus, despite some well-deserved criticism, one cannot disregard the legislative efforts made, since, placed in a harmonized environment, and with the already consolidated presence of innovation hubs, the implementation of Technological Free Zones aims at mitigating regulatory entrance barriers to different economic sectors, reducing uncertainties and, above all, boosting innovation in Portugal. We look forward to sharing more analysis and news on this subject soon.


[1] See QUAN, Dan (2020) “A few thoughts on regulatory sandboxes”, Technical report, Stanford PACS, Stanford University.

[2] Resolution of the Council of Ministers No. 29/2020 – General principles for the creation and regulation of Technological Free Zones. Available at: https://data.dre.pt/eli/resolconsmin/29/2020/04/21/p/dre.

[3] Decree-Law No. 67/2021 – Regime and governance model for the promotion of technology-based innovation through the creation of Technological Free Zones. p. 29-37. Available at: https://data.dre.pt/eli/dec-lei/67/2021/07/30/p/dre.

[4] See “Novas medidas de apoio ao ecossistema de empreendedorismo no valor de 25 milhões de euros”. Comunicados da República Portuguesa. April 21, 2021. Available at:  https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/comunicado?i=novas-medidas-de-apoio-ao-ecossistema-de-empreendedorismo-no-valor-de-25-milhoes-de-euros

Ventos de mudança na remoção e substituição das baterias portáteis

Doutrina

Quantos de nós consumidores já nos deparámos com a situação em que um aparelho portátil, como por exemplo smartphones, ainda se encontra em perfeitas condições de hardware, software ou estado de conservação, mas a sua bateria tem uma durabilidade nula ou quase nula? Quantos de nós é que já nos vimos obrigados a substituir as baterias desses aparelhos em lojas próprias ou autorizadas porque, de outro modo, é impossível ou arriscado manter o bom funcionamento do mesmo? A verdade é que, frequentemente, a vida útil do aparelho e da sua bateria não coincidem, tal como já tivemos oportunidade de analisar em texto anterior de José Filipe Ferreira, para o qual se remete.

Porém, naquilo que se esperam ser boas notícias para os consumidores europeus, o artigo 11.º da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às baterias e respetivos resíduos foi desenhado para, pelo menos, remodelar esta realidade. É, pois, proposto que, doravante, as baterias portáteis[1] incorporadas em aparelhos possam ser facilmente removíveis e substituíveis pelo utilizador final ou por operadores independentes durante a vida útil do aparelho, se a vida útil das baterias for inferior ou, o mais tardar, no fim da vida útil do aparelho. A Proposta de Regulamento também esclarece que se deverá considerar que uma bateria é facilmente substituível quando, ao retirar a mesma do aparelho, este último pode funcionar com uma bateria semelhante, sem que isso afete o funcionamento ou o desempenho do aparelho.

Como bem se compreende, esta inovação poderá representar uma pedra no charco naquele que é o paradigma atual quanto à remoção e substituição de baterias portáteis. Veja-se, por exemplo, o caso da Apple em que nos diversos aparelhos (iPhone, iPad, Apple Watch, etc.) a substituição das baterias, por um utilizador final leigo na matéria, é praticamente impossível de realizar e, mesmo que seja feita por profissionais – que não a Apple ou as lojas por si autorizadas -, não há qualquer proteção para os consumidores, caso a remoção e substituição afete o desempenho dos aparelhos.

Assim, a obrigação que a Proposta de Regulamento prevê afigura-se como bastante benéfica para os consumidores, pois oferecerá aos mesmos a possibilidade de substituírem, por si próprios, as baterias em causa, assim como terão mais opções de escolha, caso pretendam recorrer a operadores profissionais, sem que sobre essas decisões paire a quase certeza de diminuição da qualidade e desempenho do aparelho que atualmente se verifica.

Adicionalmente, esta facilidade em dar uma segunda vida aos aparelhos poderá, igualmente, conduzir a uma redução do consumo, na medida em que, não raras vezes, a opção dos consumidores passa por comprarem novos aparelhos, pois os custos e riscos inerentes à substituição das baterias não compensa o investimento. Acresce que a estatuição da obrigação que aqui se analisa poderá, também, ter a virtude de levar os fabricantes a investirem em baterias com uma vida útil mais longa, evitando-se assim a necessidade de aquisição de novas baterias e promovendo-se, deste forma, o consumo sustentável.

Por fim, é importante não esquecer que o artigo ora analisado está incluído numa Proposta de Regulamento – a qual conheceu vários avanços durante a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu – mas que, até à aprovação final, a acontecer, provavelmente, ainda em 2021, poderá conhecer alterações. Assim, somente com a versão final do Regulamento, bem como com a sua produção de efeitos concretos no mercado, é que será possível compreender se estamos perante verdadeiros ventos de mudança ou se, em contrapartida, não assistimos a uma mera brisa não refrescante.


[1] Para efeitos da Proposta de Regulamento, classificam-se como baterias portáteis aquelas que: (i) são fechadas hermeticamente, (ii) pesam menos de 5 kg, (iii) não são concebidas para fins industriais e (iv) não são baterias de um veículo elétrico nem baterias de um automóvel.