Procedimento fraudulento e determinação do consumo de energia elétrica

Doutrina

Além da hipótese de faturação baseada em estimativa de consumo (já aflorada em post anterior), a realização de “acertos de faturação” de energia elétrica pode fundar-se, também, em “procedimento fraudulento” (art. 49.º-1-b) do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Nos termos do art. 1.º-1 e 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro (DL 328/90)[1], “[c]onstitui violação do contrato de fornecimento de energia elétrica qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”, sendo que “[q]ualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor”.

Estabelece-se, assim, uma presunção ilidível contra o consumidor, no sentido em que este é o presuntivo responsável por qualquer procedimento fraudulento que se verifique em “recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”, salvo se aquele demonstrar, de modo cabal, que tal procedimento não procede de culpa sua[2]. Como sucede com qualquer presunção, “a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário”, que, na estrutura da norma do art. 1.º-2 do DL 328/90 consiste na ocorrência de “procedimento fraudulento (…) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”[3].

Existindo indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição pode proceder à inspeção da instalação elétrica pela qual é responsável, por meio de um técnico seu (entre as 10 e as 18 horas, incluindo os equipamentos de medição – art. 2.º-1 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD), de que é lavrado auto. A inspeção deve ser feita, sempre que possível, na presença do consumidor (ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado), a quem deverá ser deixada cópia. No auto, se for o caso, é descrito, sumariamente, o procedimento fraudulento detetado, bem como quaisquer outros elementos relevantes para a identificação, comprovação e imputação da responsabilidade do procedimento, sendo o mesmo instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos (art. 2.º-2 e 3 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD).

Após a identificação e verificação de factos passíveis de configurarem a prática de procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição deve notificar, por escrito, o consumidor a quem é imputável a sua autoria, devendo constar dessa notificação a identificação, entre outros, dos factos justificativos, do valor presumido do consumo irregularmente feito e do período de tempo devido para efeitos de acerto de faturação, bem como dos direitos do consumidor, designadamente, o de requerer a avaliação da prova recolhida. A avaliação é feita através de vistoria à instalação elétrica, a realizar pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no prazo máximo de 48 horas após ter tido conhecimento do facto, sempre que aplicável (cf. arts. 4.º-1 e 5.º-2 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD). Diga-se, aliás, que uma eventual interrupção do fornecimento de energia elétrica da instalação (arts. 3.º-1-a) do DL 328/90 e 79.º-1-g) do RRC e ponto 31.1 do GMLDD), consequente à deteção do procedimento fraudulento por facto imputável ao consumidor, sob pena da prática de ato ilícito, não pode deixar de ser antecedida daquela notificação (art. 4.º-1 do DL 328/90)[4].

Ainda que se conclua que o consumidor não foi autor ou responsável pelo procedimento fraudulento, o art. 3.º-2 do DL 328/90 reconhece ao “distribuidor” (leia-se, numa interpretação atualista, ao “comercializador”) o direito a ser “ressarcido” do consumo irregularmente feito (mas já não, claro, dada a ausência de culpa, das “despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude” a que alude a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 3.º)[5].

O art. 6.º-1 do DL 328/90 vem oferecer diretrizes para a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, estabelecendo que devem ter-se em conta “todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário”. Este regime permite ao comercializador a satisfação possível do seu crédito perante uma situação deste tipo[6].

Densificando algumas destas orientações, o ponto 31.2.1 do GMLDD faz impender sobre o operador da rede de distribuição o encargo probatório de apurar o período de tempo durante o qual subsistiu o procedimento fraudulento. O período ficará sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática do procedimento, se existir contrato, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses. O operador da rede deve verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição. Já o ponto 31.2.2 admite que o cálculo do consumo de energia elétrica associado a procedimento fraudulento possa atender, se o mesmo existir, ao histórico de registos fiáveis do equipamento de medição. Na sua ausência, o quantum do consumo de energia elétrica será estimado com base no consumo médio anual por escalão de potência contratada(sempre que o Dispositivo de Controlo de Potência não tiver sido manipulado, deve atender-se à potência que estiver regulada nesse dispositivo), nos termos do ponto 33.1.2. do GMLDD, adicionado do respetivo desvio padrão, sendo que os valores a atender para ambos os elementos constam da Diretiva n.º 11/2016, da ERSE.


[1] V., de forma mais desenvolvida, também o ponto 31.1 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se preveem, ainda, situações de ligação direta à rede.

[2] Sentença do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, de 30.05.2017, Relator: Jorge Morais Carvalho.

[3] Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 29.01.2017, proferida no Processo n.º 3283/2016, Relator: Paulo Duarte.

[4] Ver, a este propósito e com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2016, proferido no Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proferido no Processo n.º 3823/18.0T8BRG.G1, Relator: António Sobrinho.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida.

[6] Pedro Falcão, A tutela do prestador de serviços públicos essenciais no ordenamento jurídico português, in Estudos de Direito do Consumidor, n.º 12, 2017, p. 416.

Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica e Direito à Cobrança do Preço

Doutrina

O contrato de fornecimento de energia elétrica é um contrato misto, com elementos de compra e venda (art. 874.º do Código Civil) e de prestação de serviço (art. 1154.º do Código Civil) por terceiro, de execução duradoura, nos termos do qual o comercializador, nas palavras de Pedro Falcão, “única contraparte do utente no contrato”, se obriga à “venda da eletricidade e a promessa da prestação do serviço pelo terceiro operador da rede, consubstanciada na instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo” (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito à contraprestação, de execução periódica, consistente no pagamento do preço proporcional à energia elétrica pelo mesmo efetivamente consumida, fixado por unidade de medida (kWh), e reconduzível à figura da venda ad mensuram (art. 887.º do Código Civil).

No âmbito da execução do contrato, impende sobre o comercializador de energia elétrica o cumprimento do dever de informação ao utente (arts. 4.º da LSPE  e 3.º da Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro), sendo um dos seus corolários mais imediatos e mais relevantes, a obrigação de emissão de faturação detalhada, com periodicidade mensal, dotada dos elementos necessários a uma completa, clara e acessível compreensão dos valores faturados, na qual se discrimine, nomeadamente o montante referente aos bens fornecidos ou serviços prestados (arts. 9.º-4 da LSPE e 8.º-1 da Lei 5/2019).

Por força do disposto no art. 43.º-2 a 4 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC), a faturação apresentada pelo comercializador ao utente tem por base a informação sobre os dados de consumo disponibilizada pelo operador da rede, obtida por este mediante leitura direta do equipamento de medição (art. 37.º-2 e 7-b) do RRC e ponto 29.1.2. do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental – GMLDD) – ou por estimativa de valores de consumo, nos intervalos entre leituras de ciclo, com recurso a método, previsto no GMLDD e escolhido pelo utente no momento da celebração do contrato, que aproxime o melhor possível os consumos faturados dos valores reais de consumo (arts. 39.º e 43.º-5 do RRC), na certeza, porém, que deve prevalecer, sempre que existente, a mais recente informação de consumos obtida por leitura direta do equipamento de medição, nesta se incluindo a que tenha sido comunicada pelo utente (arts. 37.º-1, 3 e 4 e 43.º-3 do RRC).

O primeiro dos pressupostos constitutivos do direito de crédito do comercializador ao pagamento do preço pelo utente consiste no facto de a quantidade de energia elétrica refletida na fatura ter sido registada pelo equipamento de medição instalado, em cada momento, no local de consumo do utente. É, portanto, com base nos dados de consumo obtidos mediante leitura do equipamento de medição afeto à instalação de consumo do utente que se deve aquilatar da correção da quantia peticionada a título de energia ativa consumida, desde que, por sua vez, esses dados tenham sido extraídos de equipamento de medição metrologicamente conforme – o segundo pressuposto constitutivo da posição jurídica ativa do comercializador.

Nos termos do art. 5.º-1 do Decreto-Lei n.º 45/2017, de 27 de abril, só podem ser disponibilizados no mercado e colocados em serviço os instrumentos de medição que satisfaçam os requisitos previstos no diploma e sejam objeto de uma avaliação de conformidade. Os instrumentos de medição que cumpram as exigências previstas no diploma gozam de uma presunção de conformidade.

O ponto 10.5 do Anexo I deste diploma estabelece que, “independentemente de poderem ou não ser lidos à distância, os instrumentos de medição destinados à medição de fornecimentos de serviços públicos devem estar equipados com um mostrador metrologicamente controlado que seja acessível ao consumidor sem a utilização de ferramentas. O valor indicado neste mostrador é o resultado que serve de base para determinar o preço da transação”.

Adicionalmente, importa atender ao disposto no art. 7.º-1 do Anexo à Portaria n.º 321/2019, de 19 de setembro, de acordo com o qual a “verificação periódica dos instrumentos de medição é anual, salvo no caso dos contadores de água, dos contadores de gás e instrumentos de conversão de volume e dos contadores de energia elétrica ativa, cuja periodicidade é a indicada no quadro n.º 1 constante do anexo ao presente Regulamento”, ou seja, 12 anos. Estão previstas normas para os contadores de energia elétrica ativa em utilização e instalados ao abrigo de regulamentos anteriores à portaria. Face a tudo quanto precede e nessa conformidade, forçoso é concluir que, como declarado, entre outras, na Sentença do TRIAVE, de 22 de outubro de 2018, Processo n.º 1601/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte), “a prova da realização do fornecimento (ou, simetricamente, do consumo) de energia elétrica, e da correspondente quantidade real (a prova, pois, da realização e da real medida da prestação do fornecedor deste “serviço público essencial”), apenas pode fazer-se através de indicação constante de contador metrologicamente conforme, considerando quer os requisitos essenciais de colocação em serviço, quer as exigências de verificação periódica”.

Tribunal competente e fornecimento de água – Ac. do TRL, de 27/04/2021

Jurisprudência

A questão de saber que tribunais são competentes para as ações de cobrança de dívidas relativas ao contrato de fornecimento de água tem suscitado alguma discussão na doutrina e na jurisprudência ao longo das últimas décadas.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão no passado dia 27 de abril de 2021, no qual se defende a orientação dominante e que nos parece ser a mais correta.

Apesar da referência a serviços públicos essenciais, os contratos a que a Lei n.º 23/96 se refere são contratos de direito privado, independentemente de o prestador de serviço ser uma entidade pública ou privada, sendo competentes para a resolução dos litígios os tribunais comuns e não os tribunais administrativos e fiscais.

O TRL foi chamado a pronunciar-se sobre a questão no âmbito de um recurso interposto pela AdC – Águas de Cascais, S.A., que não se conformou com a decisão do tribunal judicial de 1.ª instância de absolver o réu da instância com fundamento na sua incompetência em função da matéria.

O TRL revogou a decisão impugnada, devolvendo o processo ao tribunal de 1.ª instância. Defende-se na decisão que “a dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária”.

Como também refere o TRL, a questão encontra-se, atualmente, expressamente resolvida. Com efeito, resulta do art. 4.º-4-e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estão “excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (…) a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Esta norma foi introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, podendo ler-se na Exposição de Motivos relativa ao Projeto de Lei n.º 167/XIII/4, que deu origem à referida Lei, que “esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”. Não se trata, portanto, de um novo regime, sendo a nova norma apenas interpretativa.

A norma e a respetiva explicação levantam, no entanto, um problema interpretativo adicional, uma vez que se faz referência a “relações de consumo”. Ora, o âmbito da Lei n.º 23/96 é mais alargado, protegendo-se todos os utentes, independentemente de serem ou não consumidores. Deve interpretar-se em conformidade o novo art. 4.º-4-e), aplicando-se a regra a qualquer litígio relativo a serviços públicos essenciais, independentemente de o utente ser um consumidor ou um profissional.

O TRL não se pronuncia sobre esta questão, que teria sido interessante, uma vez que o réu é um condomínio (que pode ou não ser qualificado como consumidor). Parece assumir-se na decisão a existência de uma relação de consumo em todos os casos em que se aplica a Lei n.º 23/96. Para um aprofundamento desta questão, recomendamos a leitura de um texto citado no acórdão, que corresponde à tese de mestrado de Cátia Sofia Ramos Mendes, colaboradora do NOVA Consumer Lab ao longo de vários anos e que tem como título “O Contrato de Prestação de Serviços de Fornecimento de Água”. Foi defendida em setembro de 2015 na NOVA School of Law e encontra-se disponível aqui.

Orçamento do Estado, Estado de Emergência e Serviços Públicos Essenciais

Legislação

No último dia do ano transato foi aprovada a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, referente ao Orçamento de Estado para 2021, que trouxe importantes novidades para os consumidores, dado o contexto pandémico no qual ainda nos encontramos. Uma dessas novidades (embora com contornos já conhecidos) vem na forma do art. 361.º, referente à impossibilidade da suspensão do fornecimento de serviços públicos essenciais durante o 1.º semestre de 2021. Sendo que este artigo retoma o previsto na Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, explorado aqui, aqui e aqui, com este post pretendemos explorar o regime recém-aprovado, comparando-o com o anterior e verificando quais as evoluções sofridas.

Nestes termos, vemos que ao longo dos seus sete números, o art. 361.º consagra a proibição de os prestadores de serviços públicos essenciais (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) suspenderem o fornecimento destes serviços (n.º 1).

Não obstante, relativamente às comunicações eletrónicas, dita o n.º 2 que esta proibição apenas se aplica se a suspensão em causa tiver uma de três causas: (i) situação de desemprego, (ii) quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou (iii) infeção por doença COVID-19. Assim, vemos que, ao contrário do que ocorre com os restantes serviços públicos essenciais, o fornecimento de serviços de comunicações eletrónicas poderá ser suspenso caso não se verifique nenhuma destas condições.

Ademais, caso estejamos perante a primeira ou segunda condição, o n.º 3 atribui dois direitos aos consumidores de serviços de telecomunicações: a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a suspensão temporária do mesmo, sem penalizações para o consumidor, que deverá ser retomado a 1 de janeiro de 2022 ou em data a acordar entre as partes.

Além disso, este artigo aborda a possibilidade de existirem valores em dívida relativos aos serviços prestados. Nesse cenário, os n.os 4 e 5 obrigam à elaboração, em tempo razoável, de um plano de pagamento adequado aos rendimentos atuais do consumidor, plano esse acordado entre este e o fornecedor.

Por último, o n.º 7 permite aos consumidores que viram o fornecimento dos seus serviços públicos suspensos no período entre 1 de outubro e 31 de dezembro de 2020 requerer a sua reativação sem custos inerentes, desde que (i) tenham estado desempregados, com uma quebra do rendimento do seu agregado familiar igual ou superior a 20% ou infetados pela doença COVID-19 durante a integralidade desse período e (ii) tenha sido acordado um plano de pagamento para os valores em dívida relativos ao fornecimento desses serviços.

Quando comparado com o anterior regime, previsto no art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, vemos que os regimes em causa apresentam semelhanças evidentes. Na verdade, o conteúdo dos n.os 1 e 2 mantém-se igual à versão original da Lei n.º 7/2020[1] e o n.º 3 mantém-se igual à versão da Lei n.º 7/2020, alterada pela Lei n.º 18/2020, de 29 de maio. No mesmo sentido, os n.os 4 e 5 mantêm o conteúdo previsto na Lei n.º 7/2020 e o n.º 6 continua a remeter para a Portaria 149/2020, de 22 de junho, para o cálculo da quebra de rendimentos. Por último, e como novidade, temos o n.º 7 que não existia no regime anterior.

Nestes termos, vemos que algumas das questões anteriormente apontadas por nós se mantêm nesta nova versão da proibição da suspensão de serviços públicos essenciais. Por exemplo, é possível verificar, tal como aqui foi constatado, que existe uma certa hierarquização dos serviços públicos essenciais, na medida em que são exigidos requisitos extra para a proibição de suspensão no fornecimento de serviços de telecomunicação face aos restantes. Ora, face à necessidade que se tem sentido na manutenção do trabalho à distância, ou na necessidade de contacto telefónico em situações urgentes, tais como com o SNS 24, continua sem se compreender a razão de ser desta diferenciação entre as telecomunicações e a água, a energia elétrica e o gás natural. Contudo, vemos também que o legislador, ao ter de escolher entre a versão originária da Lei n.º 7/2020 e a subsequentemente adotada pela Lei n.º 18/2020, preferiu agora a primeira, garantindo assim um maior nível de proteção do consumidor relativamente ao fornecimento de água, energia elétrica e gás, embora tenha mantido um nível de proteção mais reduzido para as comunicações eletrónicas.

Ademais, no que se refere aos planos de pagamentos em caso de valores em dívida, vemos que a lei continua sem dar resposta à questão de saber o que acontece caso não seja possível alcançar esse acordo entre o consumidor e o fornecedor, nem por abordar as questões por nós mencionadas relativamente à Portaria 149/2020, nomeadamente no que toca à interpretação do conceito de “causa determinante” prevista no art. 3.º-1.

Assim, não parece que este novo artigo venha trazer grandes inovações no que concerne ao anterior regime, a não ser o importante alargamento do prazo em que o utente se encontra especialmente protegido.

 

[1] De relembrar, tal como previamente analisado, que, com a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, os requisitos extra constantes do art. 4.º-2 foram alargados a todos os serviços públicos essenciais mencionados pelo n.º 1.

Energia elétrica, prescrição e acesso ao contador

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje à análise de uma interessante decisão do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL), proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Estava em causa, no essencial, a eventual prescrição (ou caducidade) do direito do fornecedor de energia elétrica à diferença entre o valor estimado (e cobrado) e o valor real correspondente ao consumo efetivo entre 29/11/2013 e 9/10/2019.

Apesar de a empresa ter enviado cerca de 20 cartas à consumidora e estarem registadas 12 deslocações ao local, nunca foi facilitado o acesso ao contador, que se encontra dentro da residência. Por a situação ser imputável à consumidora, o tribunal arbitral considera que não se verifica a prescrição do direito da empresa, nos termos do art. 10.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96).

O art. 10.º-2 estabelece que, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.

Não se prevê neste regime, pelo menos expressamente, a situação de a contagem do consumo real ser impedida pelo consumidor e a sua interação com o regime da prescrição.

O art. 67.º-5 do Decreto-Lei n.º 194/2009 contém uma regra especial aplicável ao contrato de prestação de serviços de fornecimento de água: “o prazo de caducidade das dívidas relativas aos consumos reais não começa a correr enquanto não puder ser realizada a leitura por parte da entidade gestora por motivos imputáveis ao utilizador” (itálico nosso). Esta regra deve ser estendida, por analogia, aos restantes serviços públicos essenciais, nomeadamente a eletricidade, que está em causa no processo em análise, que implicam leituras de contador para aferição dos consumos reais, podendo sempre recorrer-se, adicionalmente, à figura do abuso do direito, que pode limitar, estando verificados os pressupostos para a sua aplicação, o direito do utente a invocar a caducidade.

Concorda-se, portanto, com a solução dada na sentença, em especial tendo em conta que o comportamento da consumidora é particularmente censurável. É preciso não esquecer, contudo, que também cabe à empresa evitar que estas situações de incumprimento se prolonguem, não devendo arrastar o problema ao longo de tanto tempo, com vista à prevenção do endividamento excessivo dos consumidores.

Do ponto de vista processual, a decisão suscita algumas dúvidas.

Com efeito, o tribunal arbitral condena a consumidora ao pagamento do valor devido, apesar de não ser referida na sentença a dedução de qualquer pedido por parte da empresa. A ação é proposta pela consumidora, pelo que esta apenas deverá poder ser condenada se houver um pedido reconvencional.

Outra questão interessante consiste em parecer ter existido um acordo entre as partes, embora posterior ao momento em que a decisão é proferida. Pode ler-se que, “proferida a decisão e ouvida a consumidora quanto às forma do pagamento da quantia não prescrita e em dívida, esta, manifestou dificuldade em pagar o valor em dívida de uma só vez, tendo-se proposto e foi aceite pela requerida reclamada, que o pagamento seja efetuado em 15 prestações mensais e sucessivas”.

A existência de um acordo posterior à decisão, mediado pelo julgador e referido na sentença constitui um interessante exemplo da informalidade que marca a resolução alternativa de litígios de consumo, conseguindo obter-se uma solução mais adequada aos interesses das partes.

Na minha opinião, a decisão deveria, no entanto, pelo menos em parte, ser homologatória do acordo obtido (e não condenatória, como se deixou, aliás, já escrito).

Quebra de rendimentos e serviços públicos essenciais

Legislação

Há pouco menos de um mês, publicamos aqui um texto sobre a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, que alterou o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, passando a prever-se no n.º 2 que a proibição de suspensão do fornecimento dos serviços de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas se aplica “quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Nos termos do n.º 3, estes factos também permitem ao consumidor, no que respeita a serviços de comunicações eletrónicas, a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a sua suspensão temporária.

Se a situação de desemprego ou a infeção por Covid-19 são fáceis de demonstrar, a demonstração da quebra de rendimentos pode ser mais complexa. Remeteu-se, então, esta questão para “portaria a aprovar,
no prazo de 15 dias, pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das comunicações, do ambiente, da energia e da administração local” (art. 4.º-6).

Não foram 15 dias, mas foi hoje publicada a Portaria n.º 149/2020, de 22 de junho, que define e regulamenta os termos em que é efetuada a demonstração da quebra de rendimentos.

O art. 3.º-1 estabelece que a quebra de rendimentos “é calculada pela comparação entre a soma dos rendimentos dos membros do agregado familiar no mês em que ocorre a causa determinante da alteração de rendimentos e os rendimentos auferidos pelos mesmos membros do agregado no mês anterior”.

Não se define “causa determinante”, o que pode gerar dúvidas interpretativas. Poderá ser, no caso de trabalhadores dependentes, a colocação em regime de layoff e, no caso de trabalhadores independentes, a perda de um ou mais clientes. Em geral, poderá ser muito complexo perceber qual a “causa determinante”, no caso de se verificar uma concorrência de causas. É igualmente difícil conseguir delimitar esta análise por períodos mensais. Imaginemos um trabalhador independente que não recebeu nada nos dois meses anteriores e que perde entretanto todos os seus clientes. Não terá tido uma perda de rendimentos em comparação com o mês anterior, mas a sua situação caberá certamente no espírito do regime.

O art. 3.º-2 elenca os rendimentos relevantes para a aplicação deste regime, incluindo os de trabalho dependente, os de trabalho independente, os de pensões, os de prestações sociais recebidas de forma regular e os de outros rendimentos recebidos de forma regular ou periódica.

No que respeita aos comprovativos, a regra geral prevista no art. 2.º-1 é a da suficiência da declaração sob compromisso de honra, por parte do utente, que ateste quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%. Os prestadores de serviços públicos essenciais poderão, em momento posterior, solicitar ao utente que comprove a alteração de rendimentos através do documento previsto no art. 3.º-3 (recibos de vencimento ou declaração da entidade patronal, no caso de rendimentos de trabalho dependente, ou documentos emitidos pelas entidades pagadoras ou outros documentos que evidenciem o recebimento, nos restantes casos).

Mais sobre Covid-19 e serviços públicos essenciais

Legislação

A propósito da Lei n.º 18/2020, de 29 de maio.

Quem nos acompanha com regularidade lembra-se seguramente do texto que publicamos há pouco menos de um mês sobre o art. 4.º da Lei n.º 7/2020 e o impacto da Covid-19 nos contratos relativos a serviços públicos essenciais.

O legislador volta agora ao tema, alterando o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, o que vem resolver alguns problemas, mas criar outros.

As duas principais novidades introduzidas agora pela Lei n.º 18/2020 consistem (i) no alargamento do prazo relativo à proibição de suspensão do fornecimento dos serviços públicos essenciais abrangidos (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) e (ii) na limitação da proteção aos utentes, quer em função da sua natureza quer em função da situação em que se encontram.

Quanto ao prazo, a proibição de suspensão alarga-se agora até ao dia 30 de setembro. Ultrapassa-se, assim, a dúvida interpretativa suscitada pelo art. 4.º-1 da Lei n.º 7/2020, que consistia em saber se a proibição de suspensão se aplicava até ao dia 2 de junho (prazo de um mês a contar do termo final do estado de emergência) ou 30 de junho (mês subsequente ao do termo final do estado de emergência).

No que respeita à limitação da proteção dos utentes, por um lado, é necessário ter em conta que, no que concerne à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, a regra se aplicava, na versão originária do diploma, independentemente da verificação de qualquer pressuposto. Ora, na versão atual, “a proibição de suspensão (…) aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Equipara-se, por baixo, ou seja, com um nível menor de proteção, os quatro serviços públicos essenciais abrangidos por este regime, uma vez que já era esta a regra para os serviços de comunicações eletrónicas.

Por outro lado, na versão originária do diploma, no que respeita à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, o regime protegia qualquer utente (incluindo empresas) e não apenas a consumidores. Atualmente, com a inclusão de pressupostos que remetem para “desemprego”, “agregado familiar” ou “infeção”, teremos de estar necessariamente perante pessoas singulares, o que aponta para a restrição da proteção a utentes/consumidores.

Esta restrição entra em vigor no dia 1 de junho de 2020 (art. 3.º-2), o que significa que teremos uma redução do nível de proteção dos utentes, que poderá ser mais ou menos significativa em função da interpretação do prazo da proibição de suspensão previsto na versão originária do art. 4.º-1.

Lembramos, contudo, que, nos termos dos Regulamentos 255-A/2020 e 356-A/2020, da ERSE, não podem ser interrompidos os serviços de fornecimento de energia elétrica e de gás natural a qualquer utente/consumidor, independentemente da existência de um fundamento, até 30 de junho de 2020.

O diploma prolonga igualmente até 30 de setembro de 2020 o prazo dentro do qual o utente/consumidor de serviços de comunicações eletrónicas (em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior) se pode desvincular do contrato, mesmo que se encontre dentro do período de fidelização. Atribui-se igualmente ao utente/consumidor o direito à suspensão temporária do contrato.

“Box de televisão, Serviços Públicos Essenciais e Arbitragem” – Comentário ao Ac. TRC, 24-09-2019, rel. Fernando Monteiro

Jurisprudência

Consultar acórdão

Sumário

“1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7 ) é aplicável à relação que se estabelece entre a concessionária do serviço de comunicações electrónicas e o utilizador de tais serviços.

2. A box é um elemento imprescindível para o serviço de televisão prestado pela concessionária, fazendo parte da rede de transmissão do seu sinal.

3. O litígio entre a concessionária e o utente, relativo a dano provocado pela box na televisão, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 23/96 de 26/7.”

 

Comentário

Resumidamente, o caso em análise respeita a um televisor que avariou (deixou de dar imagem e som) por haver sofrido uma descarga elétrica a partir da box. Esta box foi fornecida e instalada no âmbito de um contrato de telecomunicações entre o requerente (proprietário da televisão) e a requerida (empresa de telecomunicações).

O litígio foi inicialmente submetido e solucionado pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra, tendo a requerida proposto ação de anulação da decisão arbitral com base na arguição de incompetência do tribunal.

A questão a decidir pelo TRC era saber se o litígio em causa se inseria ou não na prestação de um serviço público essencial. No caso de a resposta ser afirmativa, o tribunal arbitral seria competente para decidir, sem necessidade de existir uma convenção arbitral, por via do artigo 15.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de julho).

Nos termos desta disposição, os litígios de consumo que surjam no âmbito de contratos relativos a serviços públicos essenciais são obrigatoriamente solucionados por tribunal arbitral, se essa for a opção expressa do utente (arbitragem necessária).

Adiante-se que o TRC considerou, sem margem para dúvidas, ser aplicável o mencionado regime, confirmando a decisão que o tribunal arbitral havia emitido quanto à sua própria competência.

Ora, o contrato celebrado entre o requerente e a requerida insere-se no serviço público de comunicações eletrónicas (art. 1.º-2, al. d) da LSPE), como ambas as partes o reconhecem.

No âmbito deste tipo de contratos, é prestado um serviço “que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações (serviços de telefone fixo, telefone móvel, internet fixa, internet móvel e televisão por subscrição) e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão”, contra remuneração paga pelo utente.

A questão é saber se a avaria da TV provocada pela box instalada pela empresa concessionária pode ser relacionada com aquele serviço, o que é recusado por esta.

Apelando ao espírito do sistema legal de especial proteção do utente-consumidor e levando em consideração a imprescindibilidade da box para a transmissão do sinal para o televisor, o TRC concluiu que o litígio relativo à avaria da televisão é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da lei 23/96.

Em consequência, considerou o tribunal arbitral competente e a ação de anulação da decisão arbitral improcedente.

 

Covid-19 e serviços públicos essenciais – Lei n.º 7/2020

Legislação

A Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, veio estabelecer regimes excecionais e temporários de resposta à epidemia SARS-CoV-2, tendo como objeto, entre outros, a “não interrupção de serviços essenciais” [art. 1.º-c)].

Esta matéria encontra-se tratada no art. 4.º, que regula a “garantia de acesso aos serviços essenciais”, protegendo os utentes de alguns serviços públicos essenciais.

Com efeito, o n.º 1 determina que, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural não podem ser suspensos por falta de pagamento pelo utente das respetivas faturas. Esta regra aplica-se a qualquer utente, independentemente de este ser consumidor ou profissional, pessoa singular ou coletiva.

No que respeita aos serviços de comunicações eletrónicas, é necessário ter em conta igualmente o n.º 2 do art. 4.º, que foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de abril. Neste caso, ao contrário do que sucede com os serviços anteriormente referidos, a proibição de suspensão do fornecimento está dependente da verificação de determinado facto, o que significa que terá de ser fundamentada pelo utente. São três os factos previstos na lei, bastando que se verifique um deles: desemprego; quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %; infeção por Covid-19.

Esta diferença de tratamento revela de forma clara uma hierarquização dos serviços públicos essenciais em função do seu caráter essencial, colocando-se as comunicações eletrónicas atrás da água, da energia elétrica e do gás natural. Parece-nos, contudo, estranho que assim seja em plena pandemia, uma vez que, entre outros aspetos, muitos trabalhadores estão a exercer a sua atividade à distância a partir de casa, os estudantes estão a ter aulas à distância a partir de casa e aconselha-se quem está doente a não se deslocar às urgências, telefonando em alternativa para a linha SNS 24. Todas estas atividades pressupõem o acesso a serviços de comunicações eletrónicas.

No caso de existirem valores em dívida relativos aos serviços públicos essenciais a que este regime se aplica (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas), o art. 4.º-4 impõe aos prestadores de serviços o dever de elaborar um plano de pagamentos em conjunto com o utente. O utente encontra-se, assim, adicionalmente protegido, não tendo de pagar, de imediato e na totalidade, os valores da dívida acumulada durante este período de crise, devidos a partir do dia 20 de março de 2020 (v. art. 12.º-1).

O plano de pagamentos é definido por acordo entre o prestador de serviço e o cliente, iniciando-se apenas o respetivo cumprimento no segundo mês posterior ao termo final do estado de emergência. Fica por saber a consequência no caso de não ser possível a obtenção de um acordo entre as partes. Não sendo aprovada, entretanto, nenhuma outra norma sobre a matéria, a decisão terá de ser tomada, em última análise, por um tribunal, não podendo o prestador de serviço impor ao utente um plano de pagamentos com o qual este não esteja de acordo.

O art. 4.º-3 contém uma norma muito relevante no que respeita à proteção do utente do serviço de comunicações electrónicas, uma vez que lhe permite, em determinados casos, desvincular-se do contrato celebrado, mesmo durante o período de fidelização, sem ter de indemnizar o prestador do serviço.

A norma aplica-se “durante a vigência da presente lei”. Não definindo a lei um termo final para a sua vigência, julgamos que esta expressão se refere ao período indicado no art. 4.º-1, ou seja, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”.

Se o consumidor (e não, portanto, qualquer utente) se encontrar (i) em situação de desemprego ou, em alternativa, (ii) com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior, pode denunciar o contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas sem ter de compensar o prestador de serviço pelo incumprimento da cláusula de fidelização.

Este regime protege efetivamente os utentes de alguns serviços públicos essenciais, em especial aqueles que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade na sequência da crise pandémica em curso.