50% de noção (ou breve reflexão sobre o conceito de «preço mais baixo anteriormente praticado»)

Doutrina

Chegada a época franca do frio e das castanhas, aproxima-se também sem pudores a época dos descontos apocalípticos, das sextas-feiras negras e dos fatídicos dias em que milhares de adultos (em Portugal e no mundo inteiro) renunciam temporariamente à sua dignidade para, num salto mais comprido ou num atropelo mais bem conseguido, sem piedade pelo próximo, arrecadarem de irresistíveis prateleiras milimetricamente organizadas os afamados brinquedos com “descontos nunca antes vistos”.

Mas será mesmo assim? Procurei, de forma perfunctória e sem qualquer pretensão de rigor científico, em 2022 e agora, em 2023, comparar os preços de determinados produtos ao longo do ano e durante este período promocional escatológico. Cheguei à conclusão de que, em muitos casos, bens que em período promocional e com “50% de desconto” apresentavam um determinado preço, eram vendidos a um preço muito semelhante, sem descontos, meses antes, no mesmo estabelecimento comercial.

Não é uma novidade. Uma breve pesquisa pela Internet permite encontrar diversas queixas de particulares e até mesmo de associações ligadas à defesa do consumidor que vão no mesmo sentido da conclusão da minha pesquisa: muitos estabelecimentos comerciais manipulam o preço ao longo do ano de modo a que, embora cumprindo de forma literal o que se encontra legalmente estabelecido, o desconto real para o consumidor seja quase nulo.

O Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que transpôs parcialmente a Diretiva (EU) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores (Diretiva Omnibus, já abordada no Blog aqui e aqui), determina, no artigo 6.º, que durante a realização de práticas comerciais com redução de preço, nas modalidades de venda previstas, os letreiros devem exibir de forma clara o novo preço e o preço mais baixo anteriormente praticado. O preço mais baixo anteriormente praticado é, na aceção dada pelo diploma, “o preço mais baixo a que o produto foi vendido nos últimos 30 dias consecutivos anteriores à aplicação da redução do preço” (artigo 3.º, n.º 2, alínea a)).

É evidente que à teleologia da norma subjaz uma proteção e segurança acrescida para o consumidor e não o seu oposto. A leitura dos Considerandos da primitiva Diretiva 98/6/CE do Parlamento e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos, possibilita inferir de forma clara que o que está em causa é o direito que o consumidor tem a um funcionamento honesto do mercado e à informação “precisa, transparente e inequívoca” sobre os preços dos produtos que lhe estão a ser oferecidos.

No mesmo sentido vai o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-G/2021 ao declarar que o objetivo de se tomarem por referência os preços praticados nos 30 dias anteriores à redução do preço, incluindo aqueles que o sejam em eventuais períodos de saldos ou de promoções, é garantir uma maior proteção dos consumidores no âmbito das práticas comerciais de redução de preço e assegurar um maior equilíbrio do mercado, acrescentando que as comparações com preços de referência devem ser efetivamente reais, “por forma a assegurar a livre e esclarecida formação de vontade pelos consumidores”.

Não se trata, pois, de um assunto de mera aritmética. Ao adotar esta redação, o legislador teve a pretensão de assegurar que, ao apresentar o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores à data da redução do preço, o consumidor pudesse fazer uma comparação razoável entre o valor mais baixo que o profissional esteve disposto a atribuir a um determinado bem e o valor desse bem com desconto, a fim de ter uma ideia real da poupança final.

Sabemos que, no que diz respeito aos preços dos produtos, há flutuações de mercado, inflação, e muitos outros fatores que têm impacto na variação do valor final. Por outro lado, pese embora o meu inexperto estudo de mercado me tenha dado sinais de alarme, também é certo que poderá não ser uma prática absolutamente generalizada.

Contudo, a verdade é que, pelo menos nalguns casos, podemos afirmar com segurança que estamos perante um insólito paradoxo, que nos poderá até mesmo remeter para o conceito de prática comercial desleal: o cumprimento formal de uma norma e a concomitante violação da ratio que a preside.

Adaptando livremente um adágio conhecido, “a ignorância do consumidor nunca aproveitará ao próprio”, a verdade é que, em 2023, o “consumidor médio” tem acesso a um conjunto de ferramentas que lhe permite acompanhar a evolução dos preços dos produtos e até mesmo comparar com os preços praticados em diversos estabelecimentos comerciais. Ainda assim, nesta relação assimétrica, incumbe às empresas não só cumprir o que se encontra disposto na lei, mas também promover uma conduta profissional ética que respeite o princípio da boa-fé e a contraparte do negócio.

Os exercícios de benchmarking legal e regulatório são sempre interessantes e permitem conhecer as boas (e más) práticas que poderão (ou não), no futuro, ser adotadas (ainda que com adaptações).

Nos EUA, há cerca de 50 anos, a Federal Trade Commission (FTC)[1] decidiu[2] que a melhor forma de evitar práticas abusivas ou enganadoras no que diz respeito aos preços seria a ausência de enforcement nesta matéria, partindo do princípio que a livre concorrência faria naturalmente a regulação do mercado. Contudo, a realidade provou que nem sempre é assim[3] e as ações judiciais coletivas relacionadas com práticas enganosas de indicação de preços (deceptive pricing practices) têm-se sucedido[4][5].

Ainda assim, parece-me interessante o caminho seguido pela FTC nas suas Guides Against Deceptive Pricing[6]. Nestas orientações, a FTC define cinco situações distintas: (i) comparação com preço anteriormente praticado (former price comparisons); (ii) comparação de preços entre retalhistas (retail price comparisons; comparable value comparisons); (iii) publicidade de preços de retalho estabelecidos ou “PVP recomendado” (advertising retail prices which have been established or suggested by manufacturers or other nonretail distributors); (iv) ofertas de produtos na compra de outro produtos (bargain offers based upon the purchase of other merchandise); e (v) comparações de preços com critérios iguais quando se trata de situações distintas (miscellaneous price comparisons).

Para os propósitos deste texto gostaria de me deter apenas na primeira orientação: comparação com o preço anteriormente praticado. Nesta orientação, a FTC define o preço anteriormente praticado como o preço verdadeiro pelo qual o artigo foi vendido ao público de forma regular, durante um período considerável e estável, e apenas admite como verdadeira a prática de redução de preço que tenha como referência os preços praticados com este critério. Caso a redução de preço apresentada tenha como base um preço anteriormente praticado artificialmente inflacionado, a oferta é considerada falsa ou enganadora[7].

Esta construção normativa alicerçada no princípio da boa-fé onera o profissional e permite adicionar um critério interpretativo importante para a definição do conceito. A comunicação correta e verdadeira da informação relativa ao preço anteriormente praticado é essencial para a formação do animus contrahendi do consumidor que, quando compra um bem com redução de preço, fá-lo por acreditar que vai pagar um preço inferior ao preço de venda habitual e que, naquele momento, conhece qual é a diferença real entre os dois preços.

Por outro lado, o critério de estabilidade e de continuidade temporal do preço anteriormente praticado previne manipulações abusivas ou alterações arbitrárias por parte do profissional e viabiliza um controlo maior do lado do consumidor. A utilização destes parâmetros obriga, como se pode constatar pelo exemplo dos EUA, a uma vigilância mais constante e mais apoiada no poder coercitivo, mas pode significar também uma proteção mais eficaz do consumidor.

Perante o exposto, impõe-se, pois, avaliar a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 70/2007 e questionar se a definição de “preço mais baixo anteriormente praticado” tal qual como se encontra descrita nos termos atuais serve de facto os interesses do consumidor; ou se não será tempo de adotar novos critérios que componham uma definição mais robusta e menos permeável a manipulações e violações diretas de direitos fundamentais dos consumidores, como são o direito à informação e à transparência.


[1] Agência governamental americana com a missão de regulamentar e promover a proteção dos consumidores, instituída em 1914 pelo Federal Trade Commission Act (https://www.ftc.gov/about-ftc/history).

[2] https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=4332&context=lawreview

[3] https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00222429231164640 apud https://news.nd.edu/news/disclosing-true-normal-price-recommended-to-protect-consumers-from-deceptive-pricing/  

[4] https://risnews.com/promotional-pricing-right-side-law

[5] https://content.next.westlaw.com/practical-law/document/I6dfb3ee4077511e89bf099c0ee06c731/Beware-of-the-Sale-Complying-with-Promotional-Pricing-Guidelines?viewType=FullText&transitionType=Default&contextData=(sc.Default)

[6] Disponíveis no Code of Federal Regulations, em https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-B/part-233, § 233.1 a § 233.5

[7]If the former price is the actual, bona fide price at which the article was offered to the public on a regular basis for a reasonably substantial period of time, it provides a legitimate basis for the advertising of a price comparison. Where the former price is genuine, the bargain being advertised is a true one. If, on the other hand, the former price being advertised is not bona fide but fictitious—for example, where an artificial, inflated price was established for the purpose of enabling the subsequent offer of a large reduction—the “bargain” being advertised is a false one; the purchaser is not receiving the unusual value he expects. In such a case, the “reduced” price is, in reality, probably just the seller’s regular price.