O que têm em comum Jane Birkin e Satoshi Nakamoto?

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Fundada em 1837, a marca Hermès remete-nos de imediato para um mundo de luxo e exclusividade. Grace Kelly, atriz e princesa do Mónaco, usava amiúde o sac à dépêches da marca francesa, o que levou a que mais tarde o modelo fosse rebatizado com o nome de “Kelly”[1].  Na década de 80, um encontro fortuito no aeroporto entre Jane Birkin e Jean-Louis Dumas, à data chefe executivo da Hermès, fez nascer o icónico modelo de carteiras “Birkin”, que foi recentemente considerado, por um estudo da empresa Baghunter[2], um investimento com maior retorno do que o investimento em ouro. De acordo com as conclusões apresentadas, o valor do retorno anual de uma Birkin é de 14,2%, em muito superior ao do ouro. Estudos à parte, a verdade é que não se conhece, sequer, o preço exato de uma Birkin. O modelo é tão exclusivo que é a própria marca que decide quem vai comprar, i.e., não basta querer e ter disponibilidade financeira para adquirir – uma curiosa relação de consumo cuja análise remeteremos para outras núpcias.

Façamos agora um fast forward para 31 de outubro 2008, data em que Satoshi Nakamoto, cuja existência ainda está por provar, publicou um white paper no qual propôs um novo sistema de troca de “dinheiro” eletrónico peer-to-peer[3] baseado em tecnologia blockchain, de registo distribuído, cujas primeiras fundações académicas haviam sido lançadas por David Chaum, em Berkeley[4], na década de 80 do séc. XX – a mesma década de criação do modelo Birkin.

De tema central de conversa de um nicho muito específico de interessados, com a rápida e vertiginosa valorização desta tecnologia, depressa termos como criptoativos, bitcoin, blockchain, distributed ledger technology, token, hash ou proof-of-work tornaram-se mundialmente populares e objeto de inúmeras análises e discussões que atravessam os mais diversos campos do conhecimento. Outro termo inevitável, NFT, surgiu, do ponto de vista substancial, em 2014, durante um evento de arte em Nova Iorque, no qual o casal Jennifer e Kevin McCoy apresentaram a sua obra em vídeo Quantum. NFT significa non-fungible token, ou seja, uma representação digital de um ativo real, sob a forma de um símbolo único e insubstituível[5]. Esta representação digital é criada na blockchain e pretende funcionar como um registo digital de autoria e propriedade. De que ativos reais falamos aqui? Praticamente qualquer realidade, embora a maior parte esteja relacionada com direitos de propriedade intelectual no sentido jurídico tradicional: uma obra de arte, um texto (v.g. primeiro Twitter publicado), música, jogos, fotografias, etc. NFT passou também a ser sinónimo de uma cultura de exclusividade artística e de um negócio que movimenta avultadas somas não só de criptomoedas, mas também de moeda com curso legal.

Em dezembro de 2021 o artista de NFT Mason Rothschild publicou uma coleção de 100 carteiras digitais (não no sentido de wallets, mas de representação digital de carteiras de senhora) à qual deu o título de “MetaBirkins”. Esta coleção surgiu no seguimento de um inusitado projeto anterior do mesmo autor, intitulado “Baby Birkin”, que foi vendido em Ether, criptomoeda da blockchain Ethereum, pelo equivalente a alguns milhares de euros.

Em janeiro de 2022 a Hermès intentou ação internacional contra Mason Rotschild, por uso indevido de marca registada, e utilizou como argumentos, entre outros[6]:

i) o facto de o artista prosseguir uma atividade especulativa e lucrativa através da criação, publicidade e venda de NFT com apropriação indevida da marca Hermès, tendo tornado público que pretendia enriquecer através da usurpação da marca; 

ii) a semelhança óbvia entre o design das carteiras “MetaBirkins” e do modelo Birkin original;

iii) ter sido criada uma confusão para o consumidor, uma vez que a Hermès não tem qualquer ligação ao artista e, por esse motivo, o prestígio de ter uma Birkin original não poderia ser aproveitado para o negócio de NFT em causa – os consumidores poderiam ser enganados e levados a crer que se tratava da mesma marca, com o mesmo peso socioeconómico;

iv) o registo de NFT “MetaBirkins” enquanto marca original constituir uma violação dos direitos de propriedade intelectual da marca Hermès;

v) o facto de terem sido criados estes NFT sem qualquer ligação à marca original poder enfraquecer a credibilidade e posicionamento da Hermès no mercado de luxo.

Mason Rotschild defendeu-se invocando o entendimento expresso no caso Rogers vs. Grimaldi (1988)[7], relativamente à ponderação expressão artística/direitos de propriedade intelectual argumentando que a liberdade criativa e artística se encontra protegida pela Primeira Emenda da Constituição americana e que o seu trabalho era puramente artístico e uma forma de crítica ao uso de peles de animais nas Birkin originais (as “MetaBirkins” foram desenhadas de modo que se parecessem com carteiras de pele falsa), em nada ferindo a marca ou aproveitando-se da mesma. Inclusivamente, nas redes sociais, Rotschild relembrou a forma positiva como a marca Campbell acolheu as famosas latas de sopa de Andy Warhol[8].

Contudo, o júri não concordou com o artista de NFT e considerou que os NFT desta natureza não se encontram abrangidos pela proteção à liberdade de expressão concedida pela Primeira Emenda, uma vez que não são considerados arte. O júri condenou Mason Rotschild ao pagamento de uma indemnização por danos à Hermès, no valor de cerca de 133 mil dólares[9] [10], dando razão à marca e a todos os que diziam que, caso não tivesse utilizado o nome Birkin, o artista nunca teria tido o sucesso que teve.

Atrevo-me a dizer que nem Jane Birkin, quando deixou cair os seus pertences no chão do aeroporto, à frente de Dumas, nem Satoshi Nakamoto, quando publicou o seu white paper, poderiam antecipar que os frutos dos seus trabalhos se cruzariam um dia mais tarde numa ação judicial com grande projeção, que opôs partes que procuram, ainda que de modo diverso, a exclusividade e a autenticidade, e na qual se convocaram o direito à liberdade de expressão, o direito do consumo e direito de propriedade intelectual. Mas esta decisão judicial, por ser a primeira que se debruça sobre NFT e a necessidade de oferecer clareza aos consumidores no que diz respeito ao uso de propriedade intelectual no âmbito específico de uma rede blockchain, é importante e abre caminho para uma discussão necessária. Resta saber se abrirá também um precedente.



Qualquer opinião expressa neste artigo é da exclusiva responsabilidade do autor, não representando a opinião do Banco de Portugal.


[1] https://saclab.com/fr/story-of-the-hermes-kelly/

[2] https://baghunter.com/pages/hermes-birkin-values-research-study

[3] Bitcoin: a peer-to peer electronic cash system, https://bitcoin.org/bitcoin.pdf

[4] Computer Systems Established, Maintained and Trusted by Mutually Suspicious Groups, 1982 https://evervault.com/papers/chaum

[5] Já se abordou anteriormente aqui no blog o conceito de NFT.

[6] https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/zjvqkmgnxvx/IP%20HERMES%20TRADEMARKS%20complaint.pdf

[7] https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/695/112/2345732/

[8] https://news.bloomberglaw.com/ip-law/hermes-gets-win-over-metabirkins-in-first-nft-trademark-trial

[9] https://www.nytimes.com/2023/02/08/arts/hermes-metabirkins-lawsuit-verdict.html

[10] https://www.bloomberglaw.com/public/desktop/document/HermesInternationaletalvRothschildDocketNo122cv00384SDNYJan142022?doc_id=X1Q6ODL37A82

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