Novas regras para a sustentabilidade: sobre agora ser proibido dar com uma mão e tirar com a outra (entre outras boas notícias)

Doutrina, Legislação

No passado dia 20 de fevereiro, foi adotada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que respeita à capacitação dos consumidores para a transição ecológica, através de uma melhor proteção contra as práticas desleais e de melhor informação. Já no ano passado, aqui, tínhamos mencionado a iniciativa, apesar de nos termos concentrado na Green Claims Directive, que se encontra ainda em discussão e completará de forma mais eficiente o diploma sobre o qual nos debruçamos hoje.

A Proposta que hoje analisamos tem o intuito de capacitar os consumidores para a tomada de decisões de transação mais informadas, de promover o consumo sustentável, de eliminar práticas que prejudiquem a economia sustentável e de assegurar uma aplicação mais benéfica e mais coerente com o quadro jurídico da UE sobre a defesa do consumidor.

Em termos sintetizados, visa reforçar as regras de Direito do Consumo, nomeadamente (mas não só) no que toca à limitação da proliferação de práticas comerciais desleais que induzem os consumidores em erro quanto ao caráter sustentável do bem. Um hot topic desde que os consumidores aprenderam a pronunciar a palavra sustentabilidade, apesar de ainda não serem fluentes neste idioma.

No seguimento da discussão da Proposta, o Parlamento Europeu sugeriu adensar este mote com regras jurídicas mais específicas, de forma a prevenir práticas comerciais desleais em matéria de sustentabilidade, designadamente as seguintes:

– Obsolescência programada dos bens;

– Práticas de greenwashing;

– (Algumas) práticas de bluewashing; e

– Rotulagem obscura e/ou inidónea.

Dali resultaram as seguintes sugestões:

1. Alterar a Diretiva 2011/83/UE relativa aos direitos dos consumidores, nomeadamente quanto à obrigação do profissional de disponibilizar ao consumidor informações de forma clara e compreensível, tais como:

– Indicação da existência da “garantia legal” de conformidade dos bens e dos seus principais elementos, incluindo a sua duração mínima de dois anos, de forma bem visível, utilizando o aviso harmonizado;

– Em caso de garantia comercial de durabilidade prestada pelo produtor sem custos adicionais, abrangendo a totalidade do bem e com uma duração superior a dois anos, indicação de que o bem beneficia dessa garantia, a respetiva duração e indicação da existência da “garantia legal” de conformidade, de forma bem visível, utilizando o rótulo harmonizado;

– Nos contratos à distância, fornecimento de informações sobre as condições de pagamento e de entrega, incluindo opções de entrega respeitadoras do ambiente (por exemplo, bicicleta);

– Criação de um aviso harmonizado e de um rótulo harmonizado, de fácil reconhecimento e compreensão para os consumidores e fáceis de utilizar e reproduzir pelos profissionais.

2. Alterar a Diretiva 2005/29/CE relativa às práticas comerciais desleais, de forma a serem adicionados os aspetos ambientais, sociais e circulares à lista das principais características de um produto relativamente às quais:

2.1. As práticas do comerciante possam ser consideradas enganosas:

– Alegações ambientais referentes ao desempenho ambiental futuro sem compromissos claros, objetivos, publicamente disponíveis e verificáveis;

– Publicidade alusiva a benefícios para os consumidores que são irrelevantes e/ou que não resultam de qualquer característica própria do bem ou da empresa (por exemplo: “brincos sem glúten”, “telemóvel vegan” ou “shampoo sem lactose”);

– Utilização de alegações ambientais com afirmações genéricas sem fundamento (tais como, “amigo do ambiente”, “natural”, “biodegradável” ou “eco”) ou que, sob o manto da informação ambiental, implicam a retirada de conclusões relacionadas com outras características que não as ambientais (tais como “responsável”, “sustentável”, “consciente”).

E, de forma mais fascinante:

2.2. Aditamento de novas práticas à lista negra de práticas comerciais desleais, como, por exemplo:

– Exibição de rótulos de sustentabilidade não contemplados nos sistemas de certificação oficiais ou marcas de certificação criadas por autoridades públicas;

– Alegar, com base na compensação de emissões de gases com efeito de estufa, que um produto tem um impacto neutro, reduzido ou positivo no ambiente em termos de emissões de gases com efeito de estufa;

– Alegar falsamente que, em condições normais de utilização, um bem tem uma determinada durabilidade em termos de tempo ou intensidade de utilização;

– Fazer uma alegação ambiental sobre a totalidade do produto ou sobre a totalidade da atividade do profissional, quando esta diga respeito apenas a um determinado aspeto do produto ou a uma atividade específica da empresa/do profissional.

Interessa-nos hoje em particular este último ponto. Apesar de as novas regras incluírem, em alguns segmentos, a sustentabilidade social, no que toca a este último ponto parece fixar-se apenas nas alegações ambientais. Para melhor enquadramento, encontramos referência à parte social da sustentabilidade nos seguintes pontos:

– Inclusão de características (ambientais e) sociais não correspondentes à verdade na lista das ações enganosas (no art. 6.º-1 da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais na prestação de informação durante a comparação de produtos (no art. 7.º da Diretiva 2005/29/CE);

– Inclusão de características (ambientais e) sociais nas regras relativas à rotulagem de sustentabilidade (no art. 2.º da Diretiva 2005/29/CE).

Como se percebe, existe ainda alguma resistência (ou timidez) em legislar para a sustentabilidade social, estando a atividade legislativa em torno da sustentabilidade ambiental muito mais desempoeirada. É compreensível, uma vez que a discussão sobre a ligação entre os problemas sociais e o consumo ainda está em ascensão, mas sobretudo porque não é evidente que tratar ambas as questões em conjunto seja o caminho mais profícuo.

Em todo o caso, há várias hipóteses em que os dois temas dão origem aos mesmos problemas e que encontrarão agora resposta neste diploma. Vejam-se alguns exemplos:

1. Caracterização de um pneu como “superverde”, quando não corresponde à verdade;

2. Alegação de que o consumidor, ao comprar um bem, “melhora a vida dos agricultores”, quando não corresponde à verdade;

3. Alegação de que o bem é “muito mais sustentável/ecológico/responsável/reciclável/durável/biodegradável do que as outras marcas no mercado” (se não for divulgado o método de comparação, os produtos objeto da comparação e os fornecedores desses produtos, bem como as medidas em vigor para manter essas informações atualizadas);

4. Exibição de um rótulo com as seguintes mensagens ou símbolos: “Trade Faire”; “UN”; “Green Piece”; “ESG”.

Por outro lado, não estando a sustentabilidade social incluída em muitos outros preceitos deste diploma, casos há que certas alegações sociais ficarão de fora do escopo destas novas regras, apesar de a lógica de washing ficar protegida nas alegações ambientais. Veja-se:

1. Empresa A: “Compensamos o ambiente”, “impacto climático reduzido” ou “a nossa política tem crédito de carbono”;

2. Empresa B: “Por cada t-shirt vendida, doamos 1€ à UNICEF” (t-shirt produzida com recurso a trabalho infantil).

Neste exemplo, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo do novo acrescento à “lista negra”, uma vez que faz alegações com base na compensação de emissões. Já a empresa B não pode ser responsabilizada a esta luz, apesar de fazer alegações com base em compensações sociais.

Veja-se ainda:

1. Empresa A: “Feito a partir de material reciclado” (quando só a embalagem o é);

2. Empresa B: “Sapatos produzidos em condições justas” (quando só as solas o são).

Aqui, a empresa A pode ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, uma vez que faz uma alegação ambiental que sugere que todo o bem é composto por material reciclado quando só uma parte dele o é. Já a empresa B não pode ser responsabilizada à luz desta nova inserção, uma vez que o preceito apenas diz respeito a alegações ambientais e não sociais, apesar de se tratar da mesma lógica de distorção da interpretação por parte do consumidor.

1. Empresa A: “Temos certificação [sistema de certificação ecológico]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

2. Empresa B: “Temos certificação [sistema de certificação social]” (quando, por exemplo, apenas um dos bens vendidos pela empresa é certificado);

Neste exemplo, também a empresa A poderá vir a ser responsabilizada ao abrigo da nova “lista negra”, já não a empresa B. No primeiro exemplo, tratando-se de uma alegação ambiental, a empresa A procura beneficiar da certificação que obteve para apenas um dos bens da sua gama, parecendo tentar sugerir que essa certificação diz respeito a toda a sua atividade. Já a empresa B, fazendo uma alegação social, não está abrangida pela norma.

Por fim, veja-se este caso:

Numa gama de 10 embalagens de café do mesmo produtor/vendedor, apenas um dos segmentos apresenta certificação Fairtrade.

Este caso não se encontra contemplado nos exemplos anteriormente analisados e não é igualmente subsumível às novas proibições, trazendo um outro problema aplicável quer às alegações ambientais quer sociais. Agora, a mesma empresa apresenta uma gama de produtos certificados e outros não certificados (devidamente identificados), o que levanta dúvidas éticas acerca de uma prática empresarial que tanto aceita transacionar bens resultantes de boas práticas sustentáveis ambientais/sociais como bens que daí não resultam. Será este o próximo nível das práticas de green e bluewashing?

As questões hoje analisadas ainda farão correr muita tinta. Para já, aguardemos as assinaturas da Presidente do Parlamento Europeu de o Presidente do Conselho e a respetiva publicação do diploma.

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