Já aqui falamos de viagens organizadas por duas vezes nos últimos meses, a primeira a propósito do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, que estabelece, em traços gerais, que o cancelamento de viagens organizadas marcadas para o período entre 13 de março de 2020 e 30 de setembro de 2020 não permite ao viajante a resolução imediata do contrato e o consequente direito ao reembolso, que só poderá ser efetivado no início do ano de 2022, e a segunda sobre a resposta europeia, embora nesse contexto nos tenhamos centrado essencialmente no transporte aéreo.
Imaginemos agora o seguinte exemplo: em 2019, o consumidor celebra um contrato de viagem organizada, a realizar em junho de 2020, que inclui o transporte aéreo e um cruzeiro, pagando de imediato. Nos termos do contrato, o consumidor pode cancelar a reserva até ao final de março de 2020, pagando um valor (penalização) correspondente a 10% do preço da viagem. Sem que a viagem tenha sido entretanto cancelada, o consumidor, na última semana de março, procede ao seu cancelamento.
Aplicar-se-á neste caso o Decreto-Lei n.º 17/2020, podendo a agência de viagens adiar o reembolso até 2022?
A resposta deve ser em sentido negativo. Com efeito, o regime aplica-se às viagens “que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença Covid-19”. Ora, neste caso, a viagem foi cancelada ao abrigo da cláusula contratual que permite ao consumidor desvincular-se do contrato, sem indicação de motivo, dentro de um determinado prazo. Essa cláusula contratual visa precisamente dar segurança ao consumidor no momento da celebração do contrato, salvaguardando a posição da agência de viagens, que pode reter 10% do valor da viagem se este direito for exercido. Neste caso, o valor pago deve, portanto, ser restituído de imediato, depois de deduzidos os 10% da penalização.
Se a resposta fosse em sentido positivo, aplicando-se o Decreto-Lei n.º 17/2020 a este caso, considerar-se-ia o surto da pandemia como causa da cessação do contrato e o viajante poderia optar entre a emissão de um vale ou o reagendamento da viagem (art. 3.º-1). O reagendamento da viagem é impossível do ponto de vista lógico, uma vez que o consumidor já tinha cancelado a reserva antes do cancelamento da viagem. Quanto ao vale, este deve ser “de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante” [art. 3.º-1-a)]. Não pode, portanto, ter valor inferior. No exemplo que estamos a analisar, se a agência de viagens quiser impor a atribuição de um vale, prática que como já vimos não respeita o regime legal, não poderá nesse caso deduzir ao valor creditado os 10% da penalização. Seria ter o melhor dos dois Mundos, considerando simultaneamente que a causa da cessação do contrato é o arrependimento do consumidor (cancelamento da reserva) e o cancelamento da própria viagem.
Uma ultima nota para referir que este regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020 é excecional e temporário, limitando neste período o direito do consumidor à resolução do “contrato de viagem antes do início da mesma sem pagar qualquer taxa de [resolução], caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da mesma ou o transporte dos passageiros para o destino”, previsto no art. 25.º-4 do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março (regime jurídicos das viagens organizadas). O n.º 5 estabelece que a resolução “do contrato de viagem nos termos do número anterior confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, sem direito a indemnização adicional, sendo a agência de viagens e turismo
organizadora responsável por esse reembolso”.
O problema é que estes preceitos transpõem o art. 12.º-2 da Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, não podendo os Estados-Membros manter ou introduzir no direito nacional disposições divergentes (art. 4.º). Ora, é precisamente isso que o legislador português faz no art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, que viola, assim, o direito europeu, devendo ser eliminado.
A este propósito, a Vice-Presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, referiu no mês passado que “os consumidores têm direito ao reembolso em dinheiro. E, ponto final”.