As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.

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