Fornecimento de água e rotura em rede predial

Doutrina

Infelizmente, alguns de nós já tivemos de lidar com uma situação de rotura na rede predial de imóvel que, nos termos de contrato, é abastecido de água através da rede pública. Nessas circunstâncias, além dos encargos com a verificação e reparação da rotura, tememos a repercussão em faturação do volume de água perdida. Do ponto de vista jurídico, como deve a rotura no sistema de distribuição predial ser refletida em termos de faturação?

Com efeito, em primeiro lugar, importa ter presente que, na situação exposta, utilizador e entidade gestora se acham ligados por contrato para prestação do serviço de fornecimento de água, um contrato misto, com elementos de compra e venda e de prestação de serviços, de execução duradoura, nos termos do qual a segunda se obriga ao fornecimento permanente de água canalizada potável (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito a contraprestações, de execução periódica, consistentes, nomeadamente, no pagamento de uma “tarifa de disponibilidade”, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação, e de uma “tarifa variável”, proporcional à quantidade de água por si efetivamente consumida – art. 81.º do Regulamento n.º 594/2018, da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).

Na vigência do contrato, assiste ao utente o direito à medição dos respetivos níveis de utilização do serviço de abastecimento de água, a ser assegurado pela colocação de instrumento de medição (contador) adequado às características do local e ao perfil de consumo do utilizador (arts. 66.º-1 e 2 do DL 194/2009 e 84.º-1 e 4 do Regulamento n.º 594/2018).

De acordo com o art. 69.º-1 do DL 194/2009 (assim como o art. 41.º-1 e 2 do Regulamento n.º 594/2018), “[t]odos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos”, sendo o abastecimento predial de água (em boas condições de caudal e pressão), desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, assegurado por ramal de ligação, cuja instalação (assim como a respetiva conservação, renovação e substituição) é da responsabilidade da entidade gestora (arts. 32.º-1, 282.º, 284.º e 285.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, 69.º-9 do DL 194/2009 e 43.º-2 do Regulamento n.º 594/2018).

O art. 59.º-2 do DL 194/2009 (como também o art. 37.º-2 do Regulamento n.º 594/2018) dispõe que o serviço de abastecimento público de água através de redes fixas se considera disponível – e, portanto, o utente tem direito à prestação do serviço público essencial (art. 1.º-2-a) da LSPE) – desde que o sistema infraestrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade, caso em que os proprietários dos prédios existentes ou a construir (qualquer que seja a sua utilização) são obrigados a instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 41.º-1-a) e 44.º-3 do Regulamento n.º 594/2018) e a solicitar a ligação ao sistema público de abastecimento de água (arts. 69.º-1 do DL 194/2009 e 41.º-1-b) do Regulamento n.º 594/2018).

A conservação em boas condições de funcionamento e salubridade do sistema de distribuição predial também é da responsabilidade do proprietário, uma incumbência que abarca a deteção e a reparação de roturas ou de anomalias nos dispositivos de utilização (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 44.º-3 e 4 do Regulamento n.º 594/2018). No entanto, de forma a garantir a integridade dos sistemas prediais de distribuição de água, a entidade gestora deve tomar as medidas necessárias para evitar a deterioração anormal ou mesmo a produção de danos naqueles sistemas, resultantes de pressão excessiva ou variação brusca de pressão na rede pública de distribuição de água (ou de alteração das características físico-químicas da água suscetíveis de causar incrustações nas redes), assegurando, para tanto, a manutenção da pressão de serviço dentro dos intervalos indicados no art. 21.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95 (arts. 71.º-1-a) do DL n.º 194/2009 e 35.º-2-c) e 47.º do Regulamento n.º 594/2018).

Um dos motivos para a realização de “acertos de faturação”, além da produção de faturação baseada em estimativa de consumo nos períodos em que não haja leitura do contador, assenta na situação de comprovada rotura na rede predial (art. 99.º-1-e) do Regulamento n.º 594/2018).

Citando a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 6.7.2014, proferida no Processo n.º 7/2014, Relator: Paulo Duarte, a partir do ensinamento de M.J. Almeida Costa, o fornecimento de água pela entidade gestora do serviço origina uma obrigação genérica, que se concentra no momento da «passagem da água da rede pública para o sistema predial, através do contador, coincidindo com o acionamento dos dispositivos de utilização pelo utente. Nesse momento, nos termos do art. 408.º-2 do Código Civil, transfere-se para o utente a propriedade sobre a quantidade de água especificada (estando aquele obrigado ao pagamento do preço correspetivo). Tendo em conta o art. 796.º-1 do Código Civil, porque a transferência do risco acompanha, em regra, a transmissão da propriedade, o risco de perda (ou perecimento) da água já medida e entregue, por causa não imputável ao utente nem ao prestador do serviço, corre por conta do utente. Em suma, independentemente de ter consumido ou não a água, o utente tem de pagar o respetivo preço.

Assim, nos casos em que o utente usa, ao longo do período de faturação, os dispositivos que provocam o consumo de água, e parte dessa água, por motivo de rotura, acaba por perder-se no circuito da sua rede predial, é o mesmo responsável pelo pagamento de toda a água que lhe tenha sido entregue, mesmo a que não tenha consumido[1]. Sem embargo, em caso de comprovada rotura na rede predial, há lugar à correção da faturação emitida, operando-se o acerto de faturação nos seguintes termos: a) Ao consumo médio apurado nos termos do art. 93.º do Regulamento n.º 594/2018[2] aplicam-se as tarifas dos respetivos escalões tarifários e ao volume remanescente, que se presume imputável à rotura, a tarifa do escalão que permite a recuperação de custos nos termos do Regulamento Tarifário aprovado pela ERSAR[3]; b) O volume de água perdida e não recolhida pelo sistema público de drenagem de águas residuais não é considerado para efeitos de faturação dos serviços de saneamento e de gestão de resíduos urbanos, quando indexados ao consumo de água (art. 99.º-6 do Regulamento n.º 594/2018).


[1] Pedro Falcão, O problema jurídico das fugas de água, in “Novos Estudos sobre Serviços Públicos Essenciais”, Petrony Editora, 2018, p. 97; Cátia Sofia Ramos Mendes, O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água, Dissertação submetida com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, p. 51.

[2] Apurado, em princípio, entre as duas últimas leituras reais efetuadas pela entidade gestora, dividindo os m3 consumidos entre as duas últimas leituras pelo número de dias decorridos entre as mesmas, multiplicando o consumo diário assim obtido pelos dias que pretende faturar por estimativa (art. 67.º-6-a) do DL 194/2009, art. 93.º-1-a) e 2 do Regulamento n.º 594/2018). Ou em função do consumo médio do período homólogo do ano anterior quando o histórico de consumos revele a existência de sazonalidade ou, ainda, em função do consumo médio de utilizadores com características similares no âmbito do território municipal verificado no ano anterior, na ausência de qualquer leitura subsequente à instalação do contador (art. 67.º-6-b) do DL 194/2009 e art. 93.º-1-b) e c) do Regulamento n.º 594/2018).

[3] Sendo que, até à presente data, a ERSAR ainda não fez aprovar o Regulamento Tarifário dos Serviços de Águas (RTA), no uso da competência prevista nos arts. 11.º, alínea a) e 13.º do Anexo à Lei n.º 10/2014, de 6 de março. Neste caso, a definição da tarifa do escalão que permite a recuperação de custos resultará do regulamento tarifário de cada município ou sistema multimunicipal, adotado nos termos do respetivo procedimento aplicável previsto nos artigos 24.º a 28.º do Regulamento dos Procedimentos Regulatórios da ERSAR.

Período de fidelização e alteração da morada, desemprego ou emigração nos serviços de comunicações eletrónicas

Doutrina

Uma das questões que vem sendo dirimida com mais frequência nos centros de arbitragem de conflitos de consumo prende-se com a existência (ou não) do direito de o consumidor fazer cessar unilateralmente um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, no decurso do período de fidelização convencionado com o profissional, fundamentando a desvinculação numa alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar.

Os casos de alegada modificação da “base do negócio objetiva” reportam-se, essencialmente, a situações de alteração do local de residência do consumidor, existindo, contudo, registo de diferendos entre assinante e prestador de serviços de comunicações eletrónicas determinados por declaração de resolução do contrato (emitida pelo primeiro e com a qual o segundo não se conformou) fundada em situação de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar).

Nestes casos, revela-se pacífico que a possibilidade de o profissional prestar o serviço em determinada morada de instalação e o consumidor nele poder recebê-lo constitui uma condição determinante para a decisão de contratar das partes. E não raras vezes se verifica que a proposta apresentada pelo operador para modificação do contrato não se afigura a mais equilibrada no que tange aos interesses do assinante, sobretudo por força da diminuição qualitativa, de modo sensível, dos serviços a prestar pelo primeiro. Acresce que, nas situações de alteração do local de residência do consumidor, o facto de este, por um lado, continuar a pagar as prestações devidas por um serviço de que não vai usufruir (por continuar a ser fornecido na sua morada antiga) e, por outro lado, contratar serviços de comunicações eletrónicas para a sua nova residência (por nisso ter interesse e se tratar de um serviço público essencial – art. 1.º-2-d) da LSPE) determina uma situação de desequilíbrio entre o prejuízo causado na esfera jurídico-patrimonial do assinante e o lucro auferido pelo prestador, à custa daquele prejuízo[1].

Noutra perspetiva, a morada de prestação do serviço constitui um elemento essencial do contrato e, nessa medida, o profissional apenas se encontra adstrito a assegurar o cumprimento da sua obrigação principal com as características acordadas no concreto local estipulado no negócio celebrado com o consumidor, não podendo ser forçado a aceitar a alteração do contrato quanto à instalação de consumo[2], sobretudo quando o obstáculo que se colocou ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto surgiu por vontade do utente (e não por facto exterior à vontade das partes), não se revelando imprevisto e anómalo.

Não ignorando a assinalável litigiosidade em torno desta matéria, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), no seu Anteprojeto de diploma de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas[3], gizou, nos arts. 132.º (Alteração da morada de instalação) e 133.º (Situação de desemprego ou emigração do titular do contrato), duas soluções normativas inovadoras, especificamente pensadas para as situações acima identificadas.

Assim, nos termos do art. 132.º do Anteprojeto, “[e]m caso de alteração do local de residência do consumidor, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização, caso não possa assegurar a prestação do serviço contratado ou de serviço equivalente, nomeadamente em termos de características e de preço, na nova morada (n.º 1), sendo que, para tais efeitos, “o consumidor comunica à empresa que oferece os serviços a alteração da respetiva morada com uma antecedência mínima de um mês, apresentando documentação que a comprove” (n.º 2), fixada pela ANACOM (n.º 3), isto sem prejuízo do “direito de a empresa cobrar os serviços prestados durante o período de pré-aviso” (n.º 4).

Já de acordo com o art. 133.º do Anteprojeto, “[e]m situações de emigração ou de desemprego do consumidor titular do contrato devidamente comprovadas, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização (n.º 1), podendo a ANACOM “determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas que oferecem serviços aos consumidores” (n.º 2). Esta solução normativa apresenta semelhanças com o disposto no art. 361.º-3-a) da Lei n.º 75-B/2020 (aqui já referido no blog), podendo representar uma sobrevigência de uma medida excecional e temporária para além do atual contexto de emergência de saúde pública provocado pela pandemia da doença COVID-19.

Ora, com base no anteprojeto preparado pela ANACOM (e noutros contributos recolhidos), em 9.4.2021, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 83/XIV/2.ª (PL), a qual, no que respeita à matéria de que aqui trato, acolheu, no essencial, a disciplina desenhada pela ANACOM para as situações de alteração do local de residência do consumidor (art. 132.º da PL). Porém, eliminou o art. 133.º constante do Anteprojeto, quedando-se por uma regra que pouco ou nada acrescenta (em face da prática dos tribunais): “[o] disposto nos artigos 131.º e 132.º não prejudica a aplicação dos regimes de resolução e de modificação do contrato por alteração das circunstâncias previstos no Código Civil” (art. 133.º da PL).

Acompanhando a apreciação efetuada pela Direção-Geral do Consumidor (DGC) em parecer sobre a PL, independentemente da bondade da solução, certo é que o art. 132.º da PL “vem sanar, de forma inequívoca, a questão, eliminando o espaço de discricionariedade existente, até ao momento, com eventuais ganhos em termos de segurança jurídica”, deixando de ser “os operadores a definir, numa primeira instância, se a mudança de residência constitui ou não uma alteração anormal das circunstâncias”. Sem embargo, diversamente do que se verificava no Anteprojeto, o PL surge desprovido de uma “norma estabelecendo o poder de a ARN determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas para efeitos de prova da alteração de morada”, o que, de acordo com a mesma lógica de preclusão da margem de discricionariedade, é merecedor de crítica. Acresce que, como nota a DGC, afigura-se «necessária a clarificação do que se entende por “serviço equivalente”», devendo ficar expresso em letra de lei que “serviço equivalente” é todo aquele que não importa “qualquer downgrade da tecnologia do serviço contratado, uma vez que, em qualquer tecnologia, este downgrade acarreta uma perda significativa da qualidade do serviço contratado”.

Já a supressão do art. 133.º do Anteprojeto deveria ser repensada, atenta a necessidade de intervenção legislativa para pacificação dos conflitos existentes entre assinantes e prestadores de serviços em casos de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar), ainda que, como reconhece a ANACOM com a sua nova proposta de redação para o artigo vertida em parecer sobre a PL (p. 207), a previsão normativa possa (e deva) ser mais “equilibrada, do ponto de vista da proteção dos legítimos interesses das empresas” e no quadro de uma disciplina jurídica dos contratos que encontra no princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art. 406.º do Código Civil) um dos seus princípios fundamentais.


[1] Dália Shashati, Períodos de Fidelização, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídicas Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pp. 81-93.

[2] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 45.

[3] O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas foi estabelecido pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, tendo o Anteprojeto de diploma de transposição sido aprovado por Decisão de 31.07.2020, para envio à Assembleia da República e ao Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações.

Transposition of Directives 2019/770 and 2019/771

Legislação

The deadline for the transposition of Directives 2019/770 (supply of digital content and digital services) and 2019/771 (sale of consumer goods) expired yesterday.

On the dedicated page for each of the Directives on the official EUR-Lex portal[1], only implementation measures in four Member States (Bulgaria, Spain, France and Austria) are listed. In fact, if we analyse the diplomas indicated for each of these countries, in France we are dealing only with a legislative authorisation to regulate the subject and in Austria we are dealing with a Federal Act amending the Consumer Protection Authorities Cooperation Act, the Telecommunications Act 2003 and the Competition Act, which does not transpose the Directives. That leaves Spain, whose transposition legal regime we have already briefly commented on in this blog, and Bulgaria.

The transposition of the two Directives into Bulgarian law was made by Decree No. 90, made available on 11 March 2021, which approves the Law on the supply of digital content and digital services and the sale of goods. As in Spain, the two directives are transposed through a single legislative act, but, unlike in Spain, the two subjects (supply of digital content and digital services on the one hand and sale of consumer goods on the other hand) are treated separately. After a first chapter with some special provisions (arts. 1 to 3), the second chapter is dedicated to the supply of digital content and services (arts. 4 to 22) and the third chapter to the sale of consumer goods (arts. 23 to 40). Then there are further chapters dedicated to claims (arts. 41 to 48), means of dispute resolution (arts. 49 to 56), implementation and control (arts. 57 to 62) and administrative sanction (arts. 63 to 75). There are also a number of additional provisions and final and transitional provisions.

From a substantive point of view, I would highlight the maintenance of the liability (or legal guarantee) period at the minimum of two years provided for in the Directives (as regards the sale of consumer goods, Spanish law is more favourable to the consumer, as was pointed out in a previous post) – arts. 14-2 and 31-1. Under art. 44, in addition to the legal guarantee period, an identical limitation period is provided for. The period within which the lack of conformity is presumed to have existed at the time of supply/delivery is also stipulated as a minimum of one year (art. 32-1). There is no obligation on the consumer to notify the seller of the lack of conformity.

Although no further implementation measures have yet been reported, there is news about the process in several other Member States.

Karin Sein and Martin Ebers divide (taking into account the texts published in Vol. 12, no. 2 (2021) of JIPITEC (Journal of Intellectual Property, Information Technology and Electronic Commerce Law), which is a very interesting read) the countries belonging to the civil law family, as regards the transposition of the Directives, into three groups: (i) transposition into the general part of contract law in the Civil Code (Germany, Lithuania and Estonia); (ii) transposition into the special contracts part of the Civil Code (the Netherlands); (iii) transposition into a piece of legislation other than the Civil Code (Austria and Poland).

This classification is very interesting, although I believe it can be further broken down, separating three possible situations in the last mentioned group: (i) transposition into a legal regime regulating consumer relations in general; (ii) transposition in a separate but single statute regulating both the supply of digital content and digital services and the sale of consumer goods; and (iii) transposition in two separate statutes, one relating to the supply of digital content and digital services and the other to the sale of consumer goods.

This would result in five categories:

(1) General part of contract law in the Civil Code.

(2) Special part on contracts in the Civil Code.

(3) Legal regime regulating consumer relations in general.

(4) Single separate legal regime.

(5) Two separate legal regimes.

In group 1, we have Germany, Lithuania, and Estonia; in group 2, the Netherlands; in group 3, Spain (and we will probably soon have Poland, as mentioned here, and France, given the Preliminary Draft presented in March); in group 4, Bulgaria. The plans of the Austrian Ministry of Justice, indicated here by Brigitta Zöchling-Jud, seem to point to the inclusion of Austria in group 4, although it may be in the vicinity of the border with group 3.

Another interesting question, not to be confused with this one, is whether the subject of conformity with the contract will be uniformly regulated for the supply of digital content and digital services and for the sale of consumer goods, or whether there will be two different sets of provisions.

Spain has opted for a unitary regulation (this also seems to be the path followed by Austria and, at least in part, as regards the conformity criteria, by Poland), while Bulgaria regulates successively both subjects in the same statute. The Netherlands also seems to be aiming at regulating the two subjects autonomously, as is clear from this text by Marco B. M. Loos. The same can be said of Estonia, according to this text by Irene Kull, and Lithuania (see the text by Laurynas Didžiulis).

Other classifications could be interesting, such as the one regarding the scope of application of the transposition rules, i.e. whether they are or not limited to consumer relations. This remains for a future text. A final note on Portugal. There is still no news in the public domain about the transposition of the directives. The Secretary of State for Commerce, Services and Consumer Protection (João Torres) said in an interview in mid-March that the transposition of these Directives and of Directive 2019/2161 (which amends several consumer law directives) was being prepared, promising to “make a difference in the short term” in the field of the online sale of goods online and the supply of digital content and digital services. It was also indicated that the government is working on a law to increase the liability of digital platforms that sell third-party goods.


[1] Website consultation made on 30 June 2021.

Segurança geral dos produtos e créditos ao consumo

Legislação

O legislador europeu tem estado bastante ativo nos últimos dois anos em matérias relacionadas com o direito do consumo.

Ontem, a Comissão Europeia apresentou mais duas iniciativas legislativas com grande relevância nesta área. Segundo se pode ler na nota de imprensa emitida, os dois novos diplomas, ainda em fase de proposta, visam reforçar os direitos dos consumidores, em especial tendo em conta os desafios da digitalização e da pandemia de COVID-19. Se reforçam ou não é outra questão, que certamente irá ser objeto de discussão, aqui e em muitas outras sedes.

Em primeiro lugar, temos uma Proposta de Regulamento relativo à segurança geral dos produtos.

Nota-se mais uma vez neste diploma a tendência recente da União Europeia em legislar por via de Regulamento, tentando uniformizar as regras a nível europeu. Esta tendência já foi identificada e discutida aqui no blog, num texto de Paula Ribeiro Alves.

Propõe-se a revogação de duas diretivas, passando as respetivas matérias a ser tratadas num único diploma. São elas a Diretiva 87/357/CEE, do Conselho, de 25 de Junho de 1987, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos que, não possuindo a aparência do que são, comprometem a saúde ou a segurança dos consumidores (imitações perigosas), e a Diretiva 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos. A primeira foi transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 150/90, enquanto a segunda foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 69/2005, de 17 de março (alterado pelos Decretos Regulamentares n.os 57/2007, de 27 de abril, e 38/2012, de 10 de abril, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro).

A proposta contém várias normas inovadoras, que visam regular melhor todo o processo relativo aos produtos perigosos.

Gostaria, no entanto, de realçar o art. 35.º da Proposta, que vem acrescentar direitos subjetivos aos consumidores, além dos previstos na Diretiva 2019/771 (venda de bens de consumo), em caso de recall (definido como qualquer medida destinada a obter a devolução de um produto que já tenha sido colocado à disposição do consumidor). O operador económico responsável pelo recall deve oferecer ao consumidor um serviço rápido, eficaz e sem custos, que tem de permitir, no mínimo, a reparação do produto, a substituição do produto por outro de igual valor e qualidade ou o reembolso do valor do produto recolhido. A reparação, a eliminação ou a destruição do produto pelo consumidor só é aceitável se puder ser feita de forma fácil e segura. O profissional deve fornecer as instruções necessárias e/ou, em caso de reparação, a substituição gratuita das peças ou as necessárias atualizações de software. A solução também não pode implicar inconvenientes significativos para o consumidor, não devendo este suportar os custos de transporte ou de devolução do produto. No caso de produtos difíceis de transportar, a recolha deve ser feita pelo profissional.

Em segundo lugar, temos uma Proposta de Diretiva sobre créditos ao consumo.

Se vier a ser adotado o diploma, teremos um novo regime do crédito ao consumo, agora designado no plural (“créditos ao consumo”), sendo revogada a Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, transposta, em Portugal, pelo Decreto-Lei n.º 133/2009.

Trata-se de um regime bastante complexo, pelo que não irei aqui analisá-lo em profundidade neste texto.

Deixo, no entanto, uma nota para uma das principais novidades: a aplicação da generalidade do regime a serviços de crédito de crowdfunding, definidos como serviços prestados por uma plataforma de crowdfunding para facilitar a concessão de crédito ao consumo.

Também é introduzida uma regra sobre ofertas personalizadas emitidas com base em profiling ou outras formas de processamento automatizado de dados pessoais. A prática é permitida, mas o consumidor tem de ser informado (art. 13.º). Se estiver em causa a avaliação da solvabilidade do consumidor, o consumidor tem direito a uma revisão da decisão com intervenção humana (art. 18.º-6).

As sanções em caso de incumprimento das regras também são reforçadas, mantendo-se a tendência recente de definir um patamar mínimo, calculado em função do volume de negócios do profissional, como limite máximo para o valor das contraordenações. Os próximos tempos serão interessantes, prevendo-se uma discussão acesa em tornos destes temas. Cá estaremos para acompanhar o processo.

Música para os ouvidos de Paul

Consumo em Ação

Por Francisco Colaço, Heloísa Monte e Tiago Pedro

Hipótese: Paul, músico, cidadão alemão que vive e trabalha em Portugal há alguns anos, amante de música oriental, estava em casa sem nada para fazer e decidiu proceder ao download da aplicação Chinese Songs, gerida por uma empresa chinesa, a partir da App Store. Quando Paul começou a utilizar a aplicação, teve de se registar e dar o seu consentimento para a recolha de dados, incluindo a música que ouvia, a hora do dia e o local. Estes dados seriam então tratados pela empresa para descobrir a hora e o local de uso do telefone por parte do utilizador. Paul não precisava de pagar nenhum valor para fazer o download ou para se registar na aplicação. De acordo com as informações disponíveis nos termos e condições, o utilizador pode ouvir cinco músicas completas por dia, sem interrupções. Quando Paul estava a ouvir a segunda música, esta foi interrompida a meio por publicidade. Os termos e condições também indicam que a lei chinesa é aplicável a qualquer litigioso resultante do contrato.

Questão 1 – Assumindo que a lei alemã é mais favorável ao consumidor, seguida da lei portuguesa e finalmente da lei chinesa, qual será a lei aplicável ao contrato?

Para determinarmos qual a lei aplicável, temos de recorrer ao Regulamento Roma I, o qual trata da lei aplicável às obrigações contratuais, em especial quando estão em causa obrigações contratuais em matéria comercial que impliquem um conflito de leis. De acordo com o art. 3.º, prevalece a liberdade de escolha das partes quanto ao direito aplicável, pelo que se aplicaria, à partida, a lei chinesa, em resultado dos Termos e Condições previstos no contrato celebrado entre Paul e a Chinese Songs. Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que se trata de uma cláusula contratual geral, e tendo em conta que um contrato não deve criar um desequilíbrio entre as partes, podemos eventualmente considerá-la como uma cláusula potencialmente abusiva, a qual não vincularia o consumidor e não poderia ser invocada pelo profissional. Por conseguinte, deixando de ser vinculativa, estaríamos perante a falta de escolha quanto ao direito a aplicar, o que nos conduziria para o art. 4.º, segundo o qual, perante a falta de escolha, é aplicável a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual.  Tratando-se de uma pessoa coletiva (empresa gestora da Chinese Songs), é considerado o lugar da sua sede, pelo que se aplicaria a lei chinesa. Neste sentido, independentemente de ter existido ou não um acordo entre as partes, ou de estarmos ou não perante uma cláusula abusiva, seríamos sempre conduzidos para a aplicabilidade da lei chinesa.

No entanto, no art. 6.º do Regulamento encontramos um regime especial que se destina aos contratos celebrados por consumidores, o qual prevê que seja aplicável a lei do país onde o consumidor reside habitualmente, se se verificar uma de duas condições: (i) o profissional exerça as suas atividades no país onde o consumidor reside habitualmente ou, (ii) por qualquer meio, dirigir as suas atividades a esse país.

Neste sentido, primeiramente teremos de verificar se Paul pode ser qualificado como consumidor, para efeitos de aplicação do Regulamento Roma I. Importa referir que este conceito de consumidor é um conceito restrito, na medida em que basta uma utilização profissional, ainda que mínima, para que Paul não possa ser qualificado como consumidor. Assim, mediante os dados apresentados, não obstante o Paul ser músico, iremos assumir que o elemento teleológico se encontra preenchido, ou seja, que Paul fez o download das músicas com a única finalidade de satisfação pessoal, despido de qualquer intenção profissional, uma vez que o fez por ser um apaixonado por música oriental e se encontrar num momento de lazer. Ultrapassada esta questão, constata-se que os demais elementos constitutivos do conceito de consumidor (objetivo, subjetivo e relacional) não levantam dúvidas face à sua verificação, pelo que, de acordo com o art. 6.º-1, Paul é consumidor.

Relativamente às condições impostas pelo artigo, pode desde logo excluir-se a possibilidade de a empresa exercer atividade através de um estabelecimento localizado em Portugal, uma vez que não temos dados que nos orientem nesse sentido, acrescendo o facto de a aplicação poder ser descarregada a partir de um qualquer lugar geográfico. Por conseguinte, resta-nos aferir se essa empresa direciona as suas atividades para o país onde o consumidor tem residência habitual, ou seja, para Portugal. Paul, quando estava na sua residência (em Portugal), fez o download da aplicação a partir da App Store e registou-se na mesma. Assumindo que as cláusulas estavam escritas em português e que o download foi possível tendo em consideração a localização e os dados do utilizador (uma vez que nem todas as aplicações estão disponíveis em todos os países) e que não existiu da parte de Paul uma procura específica na China por esse tipo de serviço, podemos concluir que a Chinese Songs direciona as suas atividades (também) para um público português. Assim, verificados os pressupostos, afasta-se a aplicabilidade dos arts. 3.º e 4.º e, de acordo com o art. 6.º, será aplicável a lei Portuguesa (que é a mais favorável). Não obstante, se a lei chinesa fosse mais favorável, Paul poderia invocar a sua aplicação ao abrigo do art. 6.º-2 do Regulamento. 

Resta acrescentar que, não descurando a complexidade existente em distinguir na internet o tipo de consumidor que se trata, este é um artigo que visa garantir uma proteção acrescida do chamado consumidor passivo, ou seja, do consumidor que contrata sem sair do seu país, em contraposição ao consumidor ativo (ou tradicionalmente turista), que ativamente se desloca para ser consumidor, contratando no âmbito de uma relação internacional[1].

Questão 2 – Paul pode exercer algum direito contra a empresa que gere a aplicação? Responda tendo em conta a legislação europeia.

Para determinar os possíveis direitos de Paul na presente situação, primeiramente temos que aferir se existe alguma desconformidade no contrato celebrado. Ora, Paul celebrou um contrato inicial misto de conteúdos e serviços digitais (com maior predominância na prestação de serviços digitais, por associação a uma aplicação, esta última, conteúdo digital), matéria que é regulada pela Diretiva 2019/770

Recorrendo ao art. 7.º-a) da Diretiva, verificando-se uma desconformidade (subjetiva) com o contrato, na medida em que o serviço digital prestado a Paul não corresponde à descrição feita pelo profissional. Naturalmente, podemos questionar se as cinco músicas sem interrupções são seguidas ou se serão cinco músicas sem interrupções ao longo do dia, num universo de muitas mais, uma vez que o modo como se interpreta pode ter implicações práticas. Ora, o critério mais adequado para esclarecer esta questão passará por recorrer a uma interpretação à luz do art. 236.º do Código Civil, segundo a qual se deve colocar um declaratário normal na posição do real declaratário e daí retirar o sentido depreendido por este (sentido objetivo). Por conseguinte, é sensato afirmar que o declaratário normal colocado na posição de Paul, entenderia que a descrição constante das cláusulas contratuais gerais corresponderia às primeiras cinco músicas que fossem ouvidas, sendo impossível, de outra forma, determinar o número de músicas ouvidas por um utilizador ao longo do dia. Assim, perante os factos apresentados, estamos perante uma desconformidade evidente entre o serviço contratado e o serviço prestado.

O art. 14.º da Diretiva 2019/770 elenca os direitos do consumidor: reposição da conformidade, redução proporcional do preço ou resolução do contrato. Poderia, neste caso, Paul exigir uma redução do preço? Parece-nos lógico que não, porque, ainda que exista uma contraprestação associada, não existe um preço. O direito à resolução do contrato não traria também qualquer vantagem para Paul, uma vez que os seus efeitos típicos passariam pelo término da prestação do serviço digital e pela devolução do preço, o que remete para o problema acima apresentado. Acresce ainda que a eventual “vantagem” que Paul poderia obter, no que respeita ao tratamento dos dados pessoais, poderia sempre ser alcançada por outras vias, como através da revogação de consentimento ou através do direito ao esquecimento, previstos respetivamente nos arts. 7.º e 17.º do RGPD. Assim, no nosso entender, a solução mais adequada passa, neste caso, pela reposição da conformidade.


[1] Claudia Lima Marques, “Por um direito internacional de proteção dos consumidores: sugestões para a nova lei de introdução ao Código Civil brasileiro no que se refere à lei aplicável a alguns contratos e acidentes de consumo”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 24, n.º 1, 2004, pp. 89-137, p. 94.