Entre a oportunidade e o engano: o direito do consumo no contexto da Black Friday

Doutrina, Uncategorized

Com a aproximação da Black Friday, multiplicam-se as campanhas publicitárias e as ações promocionais que prometem descontos excecionais e oportunidades imperdíveis.

Contudo, a par do entusiasmo gerado por este período de intenso consumo, surgem questões relevantes como a publicidade enganosa, o direito à informação e a proteção do consumidor.

Esta campanha, que ocorre todos os anos na última sexta-feira do mês de novembro, encaixa-se no âmbito das legislações portuguesa e europeia sobre a defesa do consumidor, que procuram assegurar que as promoções sejam comunicadas de forma transparente, veraz e não suscetível de induzir o comprador em erro.

No contexto do mercado do consumo, a ocorrência de práticas comerciais desleais durante o período da Black Friday é muito frequente, como já se escreveu aqui no blog.

Um exemplo paradigmático manifesta-se na divulgação de informações falsas, omissas ou incompletas, com o intuito de induzir o consumidor em erro quanto às características reais do produto ou serviço, levando-o a realizar uma compra que, noutras circunstâncias, não efetuaria.

Esta situação é comum, por exemplo, em sites de companhias aéreas que, sob o pretexto de se tratar de uma campanha Black Friday, anunciam tarifas muito abaixo do valor habitual. Porém, ao iniciar o processo de compra, o consumidor constata, por vezes, que o preço anunciado não inclui taxas obrigatórias, como taxas de embarque, taxas de reserva ou custos administrativos de processamento de pagamento.

Tal prática configura uma omissão de informação essencial e pode ser qualificada como uma prática comercial desleal à luz do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2005/29/CE.

A Black Friday assenta ainda em práticas comerciais com reduções de preços.

De acordo com o Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, os comerciantes devem anunciar o preço anterior em todas as reduções de preço, isto é, o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores, a fim de assegurar a transparência e a lealdade da prática comercial.

No entanto, há relatos de consumidores que levam a crer que esta prática ainda não é totalmente aplicada. Ao acompanharem a evolução dos preços ao longo do tempo, vários consumidores afirmam que esta regra é aplicada de forma incorreta ou manipulada. Muitas vezes, verificam-se aumentos de preços simulados nas semanas que antecedem a campanha, seguidos de “descontos” que, na realidade, não representam qualquer vantagem efetiva para o consumidor.

Durante o período da Black Friday, é muito frequente que o consumidor tome, também, decisões de consumo online de forma impulsiva, sem refletir devidamente sobre a necessidade ou conveniência da sua aquisição.

Este comportamento suscita a questão do direito de arrependimento, ou direito de livre resolução, consagrado no Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro.

Este diploma funciona como um mecanismo de salvaguarda, permitindo ao consumidor refletir, durante um período de 14 dias, sobre a manutenção — ou não — da sua decisão de compra.

Assim, mesmo no contexto de promoções como a Black Friday, o consumidor tem sempre a possibilidade de devolver o produto e obter o reembolso integral do valor pago, incluindo os custos de entrega padrão.

Importa, contudo, salientar que este direito se aplica exclusivamente aos contratos celebrados à distância, ou seja, através de websites, plataformas digitais e aplicações móveis, não se aplicando às compras efetuadas em lojas físicas.

Apesar de estes direitos existirem e estarem regulamentados, verifica-se, em muitos casos, a omissão de informação relativa ao direito de arrependimento durante este tipo de campanhas. Tal leva muitos consumidores a acreditarem, erradamente, que perdem esse direito ao adquirirem produtos com desconto, o que é ilegal e constitui uma violação das normas de proteção do consumidor.

A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) deveria intensificar as ações de fiscalização para assegurar o cumprimento das normas legais, nomeadamente do regime jurídico aplicável às reduções de preços. O aumento das inspeções durante este tipo de campanhas é crucial para proteger os consumidores e garantir que as empresas cumpram a legislação de defesa do consumidor, promovendo a transparência e a veracidade da informação publicitária.

Num mundo cada vez mais consumista, em que os consumidores apresentam comportamentos cada vez mais impulsivos e previsíveis para os algoritmos, é necessário refletir sobre a influência que os profissionais do mercado de consumo exercem sobre as nossas escolhas de compra.

É fundamental promover uma maior consciencialização dos consumidores sobre as táticas de marketing utilizadas para influenciar, e por vezes controlar, as suas decisões de compra.

Cabe ao consumidor filtrar e selecionar a informação que recebe e assimila, adotando uma postura crítica face às estratégias de persuasão que moldam as suas preferências e necessidades.

Hoje em dia, mais do que nunca, é crucial compreender que por trás de cada anúncio publicitário persuasivo há um conjunto de técnicas cuidadosamente estudadas para despertar a curiosidade e incentivar o consumo.

A verdadeira liberdade do consumidor não consiste na capacidade de comprar o maior número de produtos no menor período de tempo possível, com um simples clique, mas sim na capacidade de reconhecer que estamos constantemente a ser aliciados por estratégias de marketing elaboradas. É necessário desenvolver uma consciência crítica que seleciona, rejeita ou valoriza aquilo que decidimos adquirir, não nos deixando persuadir facilmente pelo fenómeno do consumismo acelerado e automático.

O Fenómeno “Black Friday”

Doutrina

A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.

Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.

Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.

Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.

Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.

Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.

Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.

Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.

Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.

Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.

Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.