A omissão que custa milhões: o confronto entre a DECO e as operadoras de telecomunicações

Doutrina

Por Ved Bagoandas & Tiago Ribeiro Longa

No competitivo mercado das telecomunicações, as operadoras recorrem a um vasto leque de estratégias comerciais para conquistar novos clientes e fidelizar os já existentes. Campanhas promocionais com descontos temporários, ofertas de equipamentos “gratuitos”, pacotes de serviços aparentemente mais vantajosos e comunicações persuasivas são apenas alguns dos métodos mais comuns. Estas práticas, muitas vezes apresentadas como oportunidades imperdíveis, têm como objetivo captar a atenção do consumidor e levá-lo a aderir a contratos que, à primeira vista, parecem irresistíveis.

Uma prática particularmente frequente entre as operadoras de telecomunicações é a negociação direta com o cliente quando o período de fidelização se aproxima do fim. Nessa fase, as empresas procuram evitar a rescisão do contrato oferecendo condições especiais, descontos ou vantagens exclusivas para persuadir o consumidor a renovar. Essas técnicas procuram aproveitar os vieses cognitivos dos consumidores, particularmente o chamado «viés do status quo», ou seja, a tendência das pessoas agirem da mesma forma, a menos que exista uma razão poderosa para mudar. Esse viés inibe a propensão à mudança e pode ser facilmente ativado pelas empresas quando elas detectam que o consumidor tomou a decisão de mudar e lhe oferecem um argumento para manter o status quo.

Este mecanismo, embora pareça benéfico, gera frequentemente situações em que dois clientes com o mesmo plano pagam valores diferentes. As variações podem resultar da antiguidade do cliente, da capacidade de negociação individual ou, simplesmente, da estratégia comercial adotada no momento. Assim, quem demonstra intenção de cancelar o serviço pode, paradoxalmente, conseguir tarifas mais baixas do que outro consumidor que permaneceu fiel sem contestar o preço, criando um cenário de desigualdade difícil de compreender para o consumidor comum.

Nos últimos dias, o setor das telecomunicações em Portugal voltou a estar no centro das atenções após uma decisão histórica dos tribunais a favor da DECO (Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor). A sentença condena as operadoras MEO, NOS e NOWO a reembolsar cerca de 40 milhões de euros a mais de 1,6 milhões de clientes, por aumentos de preços considerados ilegais, ocorridos entre 2016 e 2017.

De acordo com a decisão, as empresas alteraram unilateralmente os valores das mensalidades, sem garantirem aos consumidores a informação clara e prévia a que estavam obrigadas, nem a possibilidade de rescindir o contrato sem custos. O tribunal considerou que as comunicações enviadas na altura não cumpriam os requisitos de transparência, tornando nulas as alterações contratuais.

Um dos pontos centrais da decisão judicial prende-se com a violação do artigo 48.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, entretanto revogada pela Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto, que obriga as operadoras a comunicar de forma clara, adequada e atempada qualquer alteração contratual, concedendo ao cliente o direito de rescindir o contrato sem custos caso não aceite as novas condições. O tribunal entendeu que a MEO, a NOS e a NOWO não cumpriram este dever legal quando procederam aos aumentos de preços entre 2016 e 2017, limitando-se a enviar comunicações ambíguas que não permitiam ao consumidor perceber plenamente o impacto das alterações nem exercer, de forma informada, o seu direito de oposição.

Acresce referir que tal conduta consubstancia uma prática comercial desleal, por se enquadrar numa omissão enganosa, nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março.

Na prática, tal situação produziu efeitos, na medida em que os consumidores fidelizados se viam confrontados com a alternativa de aceitar o aumento de preços ou suportar o pagamento de uma penalização em virtude do período de fidelização. Na maioria dos casos, optaram pela aceitação do aumento, por representar a solução, de um ponto de vista económico, menos onerosa.

O presente caso corresponde a uma violação do preceituado na alínea a) do n.º 1 do referido artigo 9.º, configurando-se como uma omissão enganosa por ser contrária à diligência profissional. Tendo em conta todas as circunstâncias do meio de comunicação, a omissão da informação relativa ao direito do consumidor a resolver o contrato sem suportar os encargos decorrentes da fidelização induziu os consumidores a uma perceção incorreta das circunstâncias reais do caso, levando-os a tomar uma decisão de transação que, em princípio, não teriam tomado de outro modo e não lhes permitindo uma decisão negocial livre e esclarecida.

Por fim, importa realçar que, nos casos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, exige-se que as empresas prestadoras de serviços adotem um comportamento correto e adequado perante os seus consumidores, orientadas pelo princípio da boa-fé e pelos deveres de lealdade durante a formação e vigência dos contratos. Deve, em especial, ser assegurado o direito à informação clara, completa e objetiva, relativamente a todos os elementos necessários à contratação de um serviço.

A sentença judicial inclui três decisões. A primeira é, conforme mencionado anteriormente, a nulidade dos aumentos de preços, por violarem a Lei das Comunicações Eletrónicas. A segunda é a condenação das operadoras a restituírem aos consumidores os valores indevidamente cobrados, incluindo juros de mora. Por fim, a terceira consiste na condenação das operadoras a divulgarem a decisão judicial através dos seus meios de comunicação, bem como de anúncios públicos, de forma a salvaguardar que os consumidores lesados se possam informar sobre o direito à restituição.

No entanto, esta sentença é de um tribunal de primeira instância, pelo que ainda não transitou em julgado, tendo as operadoras a possibilidade de recorrer para os tribunais superiores.

Ações Coletivas de Consumidores: Nova Era de Defesa

Doutrina

Louis Brandeis, ex-juiz do Supreme Court dos Estados Unidos da América e defensor ativo da justiça social, dos direitos dos consumidores e da responsabilidade corporativa, conhecido por “the people’s Lawyer”, em determinado momento referiu que “[o] cargo político mais importante é o de cidadão comum”.

Brandeis foi um dos primeiros juristas a denunciar abusos das grandes empresas e a defender o direito dos consumidores à informação e à proteção contra práticas abusivas. Este juiz defendia que o envolvimento individual era crucial para garantir uma democracia saudável e justa e, talvez fruto desse contexto, surgem, mais tarde, as ações coletivas de consumidores.

As referidas ações permitem a defesa conjunta de direitos ou interesses homogéneos de um grupo de consumidores, sendo um instrumento jurídico importante de garantia de direitos e tutela efetiva e dissuasora das infrações ao direito do consumo.

Em Portugal, as ações coletivas surgem pela primeira vez na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 52.º, n.º 3, al. a) sendo posteriormente consagradas na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, abrangendo diversos interesses, entre eles o relativo ao consumo de bens e serviços.

A mencionada Lei consagra um regime de representação processual por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, em que o autor representa todos os demais titulares dos interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (opt-out). A Lei prevê ainda um regime especial de custas, de recolha de provas e de responsabilidade civil e penal.

Este regime nacional foi complementado pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores.  Esta diretiva visa harmonizar e reforçar os meios processuais para proteção dos interesses coletivos dos consumidores na União Europeia, assegurando a existência de, pelo menos, um mecanismo processual de ação coletiva eficaz e eficiente em todos os Estados-Membros.

O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 trouxe mudanças significativas para as ações coletivas no âmbito do direito do consumo em Portugal, alinhando a legislação nacional com a Diretiva (UE) 2020/1828. Entre as principais novidades, destacam-se critérios mais rigorosos para associações e fundações que pretendam representar consumidores em tribunal, exigindo independência, transparência no financiamento e ausência de conflitos de interesses. A Direção-Geral do Consumidor assume um papel central, sendo responsável pela designação das entidades qualificadas e pela comunicação com a Comissão Europeia e outros Estados-Membros.

Outra inovação importante é a possibilidade de entidades estrangeiras, reconhecidas noutros países da União Europeia, intentarem ações coletivas em Portugal, e vice-versa. Para proteger consumidores não residentes, o regime opt-in foi adotado, exigindo manifestação expressa de vontade para serem representados em processos transfronteiriços. O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 também regula o financiamento por terceiros, impondo limites à remuneração dos financiadores e proibindo situações de dependência ou concorrência entre financiador e demandado.

Como já é apanágio da área do direito do consumo, o referido diploma incentiva a resolução extrajudicial de conflitos, obrigando a uma consulta prévia ao profissional antes de recorrer ao tribunal para medidas posteriores. Além disso, estabelece um regime especial de prescrição, facilitando o acesso dos consumidores à justiça ao interromper prazos enquanto decorrem as ações coletivas. Ademais, as regras sobre indemnizações foram clarificadas, prevendo critérios para identificação dos lesados, distribuição proporcional dos valores, assim como para destinação dos montantes não reclamados.

Por fim, o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 reforça a transparência e a divulgação das ações coletivas, obrigando à publicação das decisões e à prestação de informações detalhadas tanto pelos demandantes como pela autoridade competente. Isenta, também, consumidores e associações de custas processuais e prevê sanções para incumprimento das decisões judiciais. Estas medidas visam tornar as ações coletivas mais acessíveis, eficazes e transparentes, promovendo uma maior proteção dos direitos dos consumidores em Portugal.

A jurisprudência recente tem vindo a ilustrar, de forma concreta, o impacto do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 na prática das ações coletivas em Portugal, destacando-se algumas particularidades. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de março de 2025, Processo n.º 5623/23.7T8BRG.S1 (Relatora: Catarina Serra), o tribunal valorizou a autonomia das ações populares face ao processo penal, sublinhando que o novo regime reforça a tramitação própria e a independência destas ações, mesmo quando envolvem ilícitos criminais ou contraordenacionais.  

Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2024, Processo n.º 607/24.0T8GMR.G1.S1 (Relator: Jorge Leal), foi dada especial atenção à legitimidade das associações de consumidores e à necessidade de concretização dos pedidos e da causa de pedir, em linha com as exigências de transparência e rigor introduzidas pelo novo diploma.  

Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de abril de 2025, Processo n.º 3106/23.4T8GMR.G2 (Relator: António Pereira), destacou a admissibilidade de pedidos de indemnização coletiva e a importância da correta identificação da entidade demandada, refletindo as preocupações do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 quanto à clareza processual e à proteção efetiva dos lesados.  

Além disso, os tribunais têm aplicado as novas regras sobre a publicação das decisões, a gestão e distribuição das indemnizações e a necessidade de transparência e independência das entidades demandantes, como se observa nos pedidos e decisões que remetem para a designação de entidades responsáveis pela administração dos montantes devidos aos lesados.  O regime de financiamento por terceiros e a obrigatoriedade de consulta prévia ao profissional antes da propositura da ação também têm sido referidos como garantias adicionais de equilíbrio e boa-fé processual.  

Em suma, pelo que podemos interpretar da jurisprudência recente, parece-nos que o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 já está a ser utilizado como um instrumento legislativo fundamental para a efetivação dos direitos dos consumidores, promovendo maior segurança jurídica, transparência e eficácia nas ações coletivas em Portugal.

Henry David Thoreau, no seu grande ensaio “Desobediência Civil” referia que “[j]amais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada”. Talvez as ações coletivas de consumidores, cada vez mais reguladas, possam vir a trazer resultados reais a este grupo de indivíduos e contribuir para o fortalecimento da sua posição perante o Estado e o mercado, promovendo uma efetiva proteção de seus direitos e interesses, ao mesmo tempo em que reafirmam o papel do indivíduo como fundamento e limite do poder coletivo.