Do Luxo ao Lixo ao Luxo: O Upcycling e seus Desafios para o Direito das Marcas

Doutrina

O upcycling tem vindo a ganhar destaque como uma nova filosofia de consumo e uma forma inovadora de expressão individual. Ao contrário da reciclagem tradicional, que envolve a transformação de resíduos em matéria-prima para a criação de novos produtos, o upcycling procura dar uma nova vida a bens já existentes, acrescentando valor e muitas vezes alterando radicalmente a sua estética ou funcionalidade. Embora frequentemente associado a um movimento criativo, o upcycling também pode ser uma atividade comercial, com cada vez mais designers individuais a especializarem-se nesta prática e a transformá-la em pequenos negócios.

No mundo da moda, essa tendência tem sido particularmente forte, atraindo grande atenção do público. Um exemplo é a designer mexicana Luisa Hurtado que transforma em bolsas os jeans das mais diversas marcas, tendo vídeos sobre esta arte que ultrapassam 34 milhões de visualizações. Esta nova abordagem à moda sustentável tem atraído cada vez mais consumidores, que veem no upcycling não apenas uma alternativa ecológica, mas também uma forma de adquirir peças únicas e exclusivas.

Do ponto de vista legal, um dos principais desafios do upcycling prende-se com o potencial conflito com os direitos das marcas originais. Muitas empresas argumentam que a reutilização dos seus produtos – sobretudo quando mantém seus elementos identificadores, como logotipos – constitui uma forma de free riding, ou seja, uma apropriação indevida do prestígio da marca para promover um novo produto sem que a empresa original tenha qualquer controlo sobre ele.

O problema central está na função essencial da marca: garantir a origem e a qualidade dos bens que coloca no mercado. Se, por exemplo, um criador independente reutiliza jeans da Levi’s para criar bolsas com este logo aparente, mas não há nos novos produtos um controlo de qualidade da marca Levi’s, estará o criador a enganar o consumidor sobre a origem daquele bem? As empresas podem afirmar que tais práticas induzem o consumidor a erradamente presumir que o novo produto tem a chancela da empresa, assim comprometendo a integridade da marca. Mas será que esta alegação se aplica a todos os casos?

Muitos dos designers que trabalham com upcycling não tentam esconder a transformação que realizam. Pelo contrário, fazem questão de documentar todo o processo, mostrando claramente que os produtos foram alterados e dando ênfase ao valor artístico e sustentável do upcycling. Além disso, muitos colocam a sua própria assinatura nos produtos, reforçando a ideia de que aquele bem é um item “upcycled” e não uma criação original da marca representada pelo logo que carrega. Em Portugal, a legislação já prevê a importância da comunicação clara ao consumidor no artigo 8.º da Lei de defesa dos Consumidores. Se comunicação do upcycling for suficientemente clara e inequívoca, ainda se pode falar em uma probabilidade de confusão por parte do consumidor? A resposta ainda não é clara, não existindo até o momento decisões dos Tribunais Portugueses ou do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o tema.

Apesar da incerteza jurídica, muitos académicos defendem que o upcycling não deve ser considerado uma violação dos direitos de propriedade intelectual (PI), seja dos direitos de autor ou do direito da marca. As suas análises são fundamentadas e consolidadas, sustentando que a PI não deve ser uma barreira à criatividade e, principalmente, às iniciativas que promovam a economia circular. O contexto regulatório europeu também aponta nessa direção. A Waste Framework Directive e a nova EU Strategy for Sustainable and Circular Textiles incentivam fortemente a reutilização de materiais e a redução de resíduos, alinhando-se com os princípios do upcycling. Talvez seja necessária uma interpretação também do direito das marcas de modo a não se tornar um obstáculo a estas práticas. É uma discussão que ainda está em aberto, mas é inegável que o upcycling representa um passo importante para um modelo de consumo mais sustentável. Desde que as práticas sejam transparentes e não induzam o consumidor em erro, o reaproveitamento criativo de materiais pode desempenhar um papel fundamental na economia circular, reduzindo desperdício e incentivando uma moda mais responsável.