Direitos televisivos no futebol português: principais desafios e problemas para o consumidor

Doutrina

O futebol em Portugal é já, desde há muito tempo, uma das principais indústrias de entretenimento do nosso país, gerando receitas perto da casa dos 1000 milhões de euros por época e representando 0,26% do PIB nacional. Mais do que meros números, o futebol enquanto tal é, talvez, um dos pilares da cultura portuguesa e podemos até dizer que, de uma forma ou de outra, atinge todos os portugueses.

No entanto, ao analisarmos mais ao detalhe algumas das principais áreas onde o futebol chega, podemos identificar problemas ao nível do Direito do Consumo, nomeadamente na questão dos direitos televisivos para a transmissão do mesmo.

Sendo este um espetáculo que deve ser primordialmente voltado para o consumidor, parece-nos relevante debater estes problemas e acima de tudo, apresentar soluções que permitam não só dignificar o consumidor, como também fazer cumprir as normas da Concorrência e de Direito do Consumo, muitas vezes, postas em segundo plano neste âmbito.

Ao contrário do que sucede nas principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Alemanha), a titularidade dos direitos televisivos em Portugal pertence aos clubes ou às sociedades desportivas (SAD’s ou SDUQ’s) participantes na competição. Assim, cada uma tem a liberdade de comercializar esses direitos a qualquer operador, sendo que o mais comum é ao canal Sport TV. Desde 2013, os jogos do Sport Lisboa e Benfica no Estádio da Luz são transmitidos através de um canal próprio, a Benfica TV.

Este modelo de comercialização é, no entanto, alvo de críticas, tendo mesmo levado a Autoridade da Concorrência (AdC) a emitir, em janeiro de 2019, uma recomendação ao Governo para que os direitos televisivos passassem a ser comercializados de forma centralizada, seguindo o “modelo europeu” em que estes são vendidos através de um leilão, possibilitando uma melhor regulamentação que, naturalmente, traz vantagens para o consumidor, permitindo maior concorrência ao nível dos canais desportivos e preços ajustados ao valor de mercado.

De tal modo é assim que, a 22 de março de 2021, foi publicado o Decreto-Lei n.º 22-B/2021, que, na sequência da recomendação da AdC, determina que, a partir da época desportiva 2028/29, os direitos televisivos passem a ser comercializados de forma centralizada. Temos esperança de que muitos dos problemas que iremos discutir de seguida sejam, então, plenamente resolvidos.

Em primeiro lugar, salientam-se os acordos celebrados entre vários clubes da Liga Portugal com os grupos NOS e MEO (Altice), nomeadamente por parte dos “três grandes” (Sporting, Benfica e Porto), que pelo número de adeptos são, sem dúvida, os que representam maior peso económico. Esses acordos incluem, entre outros direitos, os de transmissão televisiva.

Ora, na perspetiva da AdC, tanto a duração (pelo menos 10 épocas desportivas) como a abrangência (NOS e Altice têm cerca de 80% deste mercado) destes acordos suscita problemas ao nível da concorrência, pois torna-se mais difícil para outros concorrentes adquirir direitos de transmissão, limitando a entrada no mercado nacional de canais desportivos que, possivelmente, até refletiriam melhor as preferências dos consumidores.

Desde que estes acordos foram celebrados, não houve qualquer alteração na transmissão dos jogos da Liga Portugal, mesmo com a entrada de um novo concorrente no mercado, a DAZN Portugal. Estes continuam quase em exclusivo a ser transmitidos pela Sport TV (com a exceção da Benfica TV).

Assim, no âmbito destes acordos, poderemos estar perante um abuso de posição dominante por parte destes agentes económicos, o que é vedado pelo art. 11.º-1 da Lei da Concorrência (Lei 19/2012) e, naturalmente, afeta o previsto no arts. 3.º-e) e 9.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor, que consagram o direito à proteção dos interesses económicos do consumidor. A falta de concorrência pode levar à prática de preços excessivos.

Em segundo lugar, cumpre ainda discutir de que forma a estrutura acionista da Sport TV pode não só limitar a concorrência, como também perpetuar políticas de alinhamento de preços, mantendo-os artificialmente elevados. Este é também um dos problemas identificados pela AdC na recomendação já referida neste artigo.

Sendo este canal detido de forma igualitária pelas três principais operadoras de televisão em Portugal, estas naturalmente terão interesse em que os jogos da Liga Portugal sejam transmitidos na Sport TV, pelo que poderemos assistir a políticas anticoncorrenciais, com a possibilidade de as operadoras dificultarem a entrada no mercado de canais desportivos concorrentes e ainda evitarem competir entre si pela aquisição dos direitos, podendo, desta forma, praticar políticas de alinhamento de preços.

Assim, poderemos estar a falar de uma prática comercial desleal, proibida pelo DL 57/2008, por parte das operadoras a atuar em Portugal, na medida em que parece haver uma distorção do comportamento económico do consumidor, violando o disposto no art. 5.º-1 do diploma. O consumidor não tem outra opção que não seja pagar valores excessivamente elevados para poder assistir aos conteúdos desportivos.

Além de compartilharem a estrutura acionista do principal canal desportivo português, as operadoras firmaram um acordo entre si que permite a partilha dos direitos de transmissão dos jogos adquiridos individualmente, ou seja, a NOS que celebrara um acordo com o Sporting e com o Benfica disponibilizou à MEO (Altice) os direitos, e o mesmo, de maneira inversa, em relação ao Porto.

Este acordo, a curto prazo, parece beneficiar os consumidores, na medida em que não precisam de trocar de operador para assistir a determinados jogos.

Porém, a longo prazo, surgem problemas, também identificados pela AdC, tais como, a redução da concorrência entre os operadores. Como os jogos são partilhados, não há qualquer incentivo para que um tente superar o outro, a possível inflação dos preços por não haver qualquer tipo de disputa real e ainda a dificuldade, mais uma vez, para a entrada de novos concorrentes no mercado, prejudicando os consumidores, pois há uma clara manutenção de preços acima do valor de mercado nos pacotes desportivos. Nesta situação, tanto estes acordos como a questão da estrutura acionista da Sport TV parecem ir contra o disposto no art. 9.º-1 da Lei da Concorrência, que proíbe acordos e práticas concertadas por parte de empresas, neste caso, das operadoras a atuar em Portugal.

Em suma, a falta de concorrência e os preços elevados podem ter consequências negativas, não só para os consumidores como também para as próprias operadoras e para a indústria do futebol, na medida em que aumenta o recurso dos consumidores a plataformas ilegais para assistir aos jogos. Este é, aliás, um problema atual, como demonstra um estudo do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), que revelou que, em junho de 2024, cerca de 17% dos portugueses acederam a conteúdos desportivos por meios ilegais, um número preocupante para um setor que pretende crescer e desenvolver-se.

Para evitar esta tendência e garantir um mercado mais equilibrado, é essencial reforçar a fiscalização sobre as operadoras e assegurar que os consumidores paguem valores justos pelo acesso aos conteúdos desportivos. A implementação do modelo centralizado em 2028/29 poderá constituir um passo positivo, mas, até lá, medidas regulatórias mais rigorosas e eficazes podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do sistema atual.

Internet das Coisas e os desafios de um futuro não tão distante

Doutrina

A designação é genérica e, sem dúvida alguma, abstrata, mas a Internet das Coisas (‘IdC’, ou, em inglês e como é mais conhecida, Internet of Things – ‘IoT’) apresenta-se como um setor que, embora ainda longe da sua maturidade, já faz parte do quotidiano da maioria dos consumidores. Foi, pois, com o propósito de “compreender melhor o setor da IdC para os consumidores, o panorama da concorrência, as tendências emergentes e potenciais questões relacionadas com a concorrência” que a Comissão Europeia lançou, em 16.7.2020, um inquérito setorial sobre a IdC cujo Relatório Final (‘Relatório’) foi recentemente publicado[1].

Uma possível, mas provavelmente incompleta, definição breve de IdC aponta a mesma como um sistema de dispositivos informáticos relacionados entre si com a capacidade de transferir dados através de uma rede sem necessidade de interação humana podendo ser monitorizados ou controlados remotamente via internet. É, no fundo, tornar os objetos comuns em objetos “inteligentes”, como acontece, por exemplo, com relógios ou eletrodomésticos.

O inquérito setorial conduzido pela Comissão teve uma participação interessante e do seu âmbito foram excluídos os veículos conectados, telemóveis inteligentes e tablets. O Relatório assenta em 5 pilares, cujas principais conclusões se apresentarão de seguida.

Em primeiro lugar, ao nível das características dos produtos e serviços da IdC, o Relatório conclui que o número de dispositivos e serviços “inteligentes” tem vindo a crescer, oferecendo, assim, mais opções para os consumidores. Atualmente, os assistentes de voz assumem-se como um dos motores do desenvolvimento dos produtos e serviços da IdC, pois é através de assistentes como a Alexa (Amazon), Siri (Apple) ou Google Assistant que os utilizadores conseguem aceder às mais diversas funcionalidades que os dispositivos “inteligentes” oferecem.

Seguidamente, o Relatório descreve as principais características da concorrência no setor, identificando, entre outros, “o custo do investimento em tecnologia e a situação da concorrência como os principais obstáculos à entrada ou expansão no setor da IdC para os consumidores” (Relatório, §13). O principal problema parece situar-se a montante, ou seja, no mercado dos assistentes de voz, onde, de acordo com os inquiridos, não são esperados novos operadores de mercado (pelo menos no curto prazo), fruto dos elevados custos de desenvolvimento e operação. É, pois, esta situação que conduz a que a estratégia comercial da maioria das demais empresas assente no desenvolvimento dos seus produtos e serviços “inteligentes” com a integração de um dos três principais assistentes de voz. Contudo, qual bola de neve, esta estratégia comercial, ainda que compreensível e racional, agudiza a incapacidade destas empresas em competirem, a montante, com os atuais players do mercado dos assistentes de voz; resultando, também, em problemas a jusante, pois estes últimos operadores têm também uma forte oferta de produtos e serviços “inteligentes”, beneficiando da sua integração vertical e ecossistemas próprios.

De facto, a interoperabilidade nos ecossistemas da IdC é, de igual modo, uma peça-chave deste setor para que seja assegurado, por um lado, o uso pleno das funcionalidades de que os consumidores podem usufruir e, por outro, o aumento das opções de escolha de produtos e serviços “inteligentes”, combatendo a concentração da oferta em alguns fornecedores. A este respeito, são os sistemas operativos e os assistentes de voz que desempenham o papel primordial na ligação dos diferentes ecossistemas da IdC. Contudo, os problemas apontados acima quanto à concentração do poder de mercado a montante em poucas empresas também se fazem sentir aqui, pois são empresas como a Google ou a Apple que impulsionam a integração dos seus sistemas operativos ou assistentes de voz noutros produtos/serviços “inteligentes”. De acordo com o Relatório, estas empresas impõem processos de certificação que, regra geral, controlam de forma unilateral e as várias especificações que permitem a interoperabilidade são disponibilizados mediante a celebração de um contrato que, de acordo com a maioria dos inquiridos, não são abertos a negociação, a não ser que se trate de uma contraparte com forte poder negocial.

Numa outra vertente, o Relatório também se foca nas normas e processo de normalização, ou seja, uma componente mais técnica com o propósito de estabelecer as normas pertinentes para a integração e ligação de dispositivos, assim como aquelas que devem garantir a qualidade e segurança das comunicações no âmbito da IdC. Os inquiridos apontam para uma grande variedade de normas, mas encontram-se divididos entre aqueles que apelam a uma maior homogeneidade destas normas e aqueles que entendem que a normalização não é sinónimo de melhores condições.

Por fim, a matéria dos dados (pessoais e não só) na IdC foi também abordada pelo Relatório, o qual dá conta de uma grande recolha de dados seja por introdução manual, seja de forma automática, por exemplo através do funcionamento em segundo plano. Um dos exemplos dados pelo Relatório (§28) é o de um sistema de aquecimento “inteligente” que pode ser capaz de “recolher dados sobre a temperatura e a qualidade do ar dentro de casa, o movimento, o momento em que o sistema de aquecimento é ligado e desligado, podendo igualmente registar o momento em que os utilizadores saem e entram em casa”. Como este exemplo, há vários outros dispositivos que têm uma presença constante na vida e nas casas dos consumidores, o que lhes confere um valor acrescentado bastante interessante, nomeadamente para a criação de perfis de utilizador, entre outros fins. Ainda que muitos dos inquiridos indiquem que esta oportunidade comercial se encontra num estado embrionário, a mesma deve ser acompanhada com atenção para que cumpra a legislação aplicável e de modo a preservar a confiança dos consumidores, a confidencialidade, bem como o acesso aos dados e a sua integridade.

O Relatório descreve um setor complexo, em franco crescimento e com vários desafios que devem ser trabalhados desde início, pois, como nos ensina a sabedoria popular, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. É inequívoco que os assistentes de voz se assumem como o produto mais avançado no domínio da IdC e que poderá moldar o futuro deste setor. Como é evidente, tal questão, aliada à estrutura concorrencial que este mercado parece apresentar e à falta de incentivo para a entrada de novos operadores no mesmo, configura um dos principais desafios concorrenciais, nomeadamente através de potenciais práticas negociais abusivas que o Relatório já parece sugerir. Daqui também pode derivar um outro problema cada vez mais comum no direito da concorrência: o self-preferencing. Será importante garantir que dispositivos “inteligentes” com sistema operativo ou assistente de voz de uma empresa não sugiram, numa lógica preferencial, produtos ou serviços dessas mesmas empresas.

Em suma, o Relatório apresenta-se como uma primeira boa fotografia do setor e que, espera-se, já terá impacto em algumas iniciativas legislativas da União Europeia no âmbito da propriedade industrial e mercados digitais (Relatório, §52). Será interessante ir acompanhando os desenvolvimentos neste âmbito, de modo a garantir o sempre difícil equilíbrio entre o progresso tecnológico e as obrigações legais aplicáveis.


[1] Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, relatório final – inquérito setorial sobre a Internet das Coisas para os consumidores {SWD(2022) 10 final}, de 20.1.2022 (COM(2022) 19 final. Disponível aqui.