Inteligência Artificial, a nova vulgaridade

Doutrina

A Inteligência Artificial tornou-se ubíqua em grande parte do mundo e para grande parte das pessoas. Está presente no consumo, no trabalho, na vida em geral, na guerra, nas coisas. O que é bom e mau, dá à humanidade superpoderes e tem, provavelmente, o poder de extinguir a espécie humana.

Em março de 2023, promovida pelo Future of Life Institute, foi amplamente divulgada uma carta que pedia aos gigantes tecnológicos uma pausa de seis meses na investigação em Inteligência Artificial. Vários proeminentes líderes empresariais, cientistas de renome e preocupados mais ou menos importantes assinaram-na e divulgaram-na. Elon Musk juntou-se ao movimento, embora pouco tempo depois já estivesse a lançar a xAI, para competir no campo da Inteligência Artificial Generativa, novidade que esteve na base deste sobressalto geral, de que o ChatGPT é a vedeta mais conhecida. Parece que o apelo, em vez de abrandar, acelerou a criação.

A OpenAI tornou acessível ao público, em novembro de 2022, o ChatGPT, que assentava no denominado GPT-3 (mais concretamente 3.5), estando GPT para generative pre-trained transformer e 3 para a versão utilizada. Como acontece com os outros sistemas de Inteligência Artificial, que vivem de dados com que aprendem (machine learning), quanto mais e melhor for a informação mais rápida e precisa é a aprendizagem e melhores são os resultados. Tornando uma ferramenta como o ChatGPT acessível ao público em geral, foi como fogo em estopa. Instantaneamente, milhões de pessoas por todo o mundo estavam a experimentar a novidade, tornando o seu crescimento muito rápido e o seu desenvolvimento facilitado pela quantidade de interações com esses “professores”.

Agora parece que está para sair o ChatGPT-5. E uma série de concorrentes de outras empresas e de outras áreas de aplicação, tanto na linguagem, como no campo das imagens, som e código, em que a Inteligência Artificial Generativa também é espantosa.

A ubiquidade da Inteligência Artificial assenta no desenvolvimento das suas potencialidades e na abrangência das suas aplicações. No consumo, seja online ou no “mundo real”, está subjacente à aquisição propriamente dita ou, pelo menos, presente algures na cadeia de valor inerente à produção e distribuição de bens e serviços. Já ninguém pensa nisso. As pessoas limitam-se a usar os dispositivos por onde os algoritmos se vão executando e aprendendo, fazendo habilidades espantosas e auxiliando os humanos mais afoitos a ensaiar uns truques de magia.

A evolução foi rapidíssima e global. Basta pegar na última década, deixando de fora a pré-história da viragem do milénio, há longínquos vinte anos, para cada um de nós olhar para o modo como fazíamos o que tínhamos a fazer, como vivíamos a nossa vida, como aprendíamos, como comprávamos, para se chegar à conclusão de que as mudanças são grandes e radicais.

Algumas ideias promissoras falharam, outras foram adiadas, outras substituídas, mas o caminho na direção da automatização, da ampliação da rede de Internet, colocando-a nos objetos, naquilo a que veio a ser denominado “Internet das Coisas”, na generalização do uso de máquinas que aprendem tem sido, e tudo indica que vá continuar a ser, inexorável.

A Inteligência Artificial é uma espécie de eletricidade do nosso tempo. Quando usamos o computador, o telemóvel, o carro, a casa, quando nos movemos, não pensamos que o fazemos porque temos eletricidade e, na maior parte das situações, porque temos disponível Inteligência Artificial. Isso acontece quando algo se torna um dado adquirido, tão presente que fica invisível, até desprezível, exceto quando falta. Foi o que aconteceu com a eletricidade, há mais de um século. É o que acontece com a Inteligência Artificial, há cerca de uma década. Assim como se passou a carregar num interruptor e a ter uma luz que iluminou as trevas milenares, achando normalíssimo que assim acontecesse, e como se passou a ligar um fio à parede para pôr a funcionar máquinas de todas as espécies, achando igualmente normalíssimo, também nos fomos recentemente habituando a que essas máquinas nos indicassem o caminho por onde devíamos seguir, nos fornecessem a informação de que não nos estávamos a lembrar, nos permitissem saber instantaneamente História, Geografia, Matemática ou qualquer outro saber, cumprissem ordens nossas, nos dessem ordens que cumprimos, nos indicassem o que comprar, onde o fazer, comparassem preços e produtos, recebessem e fizessem reclamações, conversassem connosco com uma paciência infinita de que nem o mais simpático dos humanos é capaz.

Não nos apercebemos, e provavelmente preferimos até não saber, do que está inerente aos resultados que desejamos. Em todos os campos. Cientistas credibilíssimos avisam há mais de cinquenta anos, com provas irrefutáveis, sobre as alterações climáticas e as suas consequências, mas nós queremos a nossa comodidade, o nosso carro, as nossas embalagens de plástico, as nossas fibras, a nossa roupa. A indústria têxtil é das mais poluentes, como magistralmente mostra a série de reportagens “O que vamos vestir amanhã?”, que abre uma janela de esperança à mitigação do problema através do uso de tecnologia. Estudos, princípios e regras, intensos avisos sobre o uso e, principalmente, o abuso da Inteligência Artificial não têm faltado. Por exemplo, no campo da ética, pode-se relembrar o esforço da União Europeia e de prestigiados cientistas para construir uma “Inteligência Artificial Confiável”. Salientam-se, pelo destaque mediático e pela intensidade, os avisos de 2014, de Stephan Hawking e Elon Musk sobre a ameaça, inclusive de extinção, que a Inteligência Artificial representava para a humanidade. Elon Musk voltou a avisar em 2023, ainda que não parecendo capaz de seguir os seus próprios conselhos, ao juntar-se ao grupo que subscreveu a carta-apelo promovida pelo Future of Life Institute.  Yuval Noah Harari, em maio de 2023, veio de propósito a Lisboa para nos deslumbrar e assombrar, numa Conferência em que explicou exatamente o que pensava sobre o assunto. Como faz há anos, por escrito, em best-sellers, e por todos os meios possíveis. Chamaram-lhe cientista “rockstar”. É ouvido e ignorado por todo o lado. O público acha-lhe graça, encolhe os ombros e consulta o telemóvel, talvez para procurar primeiro Harari e, depois, um restaurante para ir de seguida consumir um bom jantar, guiado por uma aplicação com glocalização, escolhendo o prato indicado por uma influencer famosa, tirando uma foto para colocar nas redes sociais enquanto a comida arrefece, criando permanentemente mais dados que os algoritmos deglutem sem dificuldade.

A Inteligência Artificial é a nova vulgaridade, acessível a todos, sempre presente e disponível. Ubíqua e não inócua.

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