Crédito ao consumo e crédito social chinês

Doutrina

Crédito, palavra que vem do latim creditu, significa acreditar, ter confiança. É figura antiga e, juridicamente, tem a sua mais intensa manifestação, no mútuo, em regra de dinheiro e oneroso. Alguém entrega determinada quantia a outrem e crê, por isso é credor, que a mesma lhe vai ser devolvida. São normalmente estipulados juros como contrapartida. Sendo excessivos, consubstanciam usura[1]. Ao longo da História ocorreram várias vicissitudes, por vezes extremamente desagradáveis, como a prisão por dívidas e por usura.

O crédito tem, subjacente, duas ideias. Do lado do credor, a confiança de que o dinheiro entregue vai ser devolvido gerando, entretanto, alguma remuneração e do lado do consumidor, a possibilidade de aceder imediatamente a algo que precisa ou deseja, diferindo o pagamento.

O sistema de crédito social chinês tem, subjacente, duas ideias. Do lado do Estado e do credor, a confiança é substituída pela posse de informação pessoal detalhada que determina se o consumidor vai ou não pagar, assistida por uma vertente punitiva que desincentiva fortemente algum desvio. Do lado do consumidor, a possibilidade de consumir e viver bem se for bom cidadão e de ser fortemente limitado no consumo e na vida se calhar a ser incluído numa lista negra.

No mundo ocidental industrializado, o crédito ao consumo é um instrumento relacionado com a massificação da compra de bens e serviços, impulsionada pela necessidade de reconstrução da Europa de meados do século XX destruída pela guerra. O incentivo à procura que estimulasse a oferta e a resposta do mercado criando bens e serviços, originava um crescimento económico que restaurava os Estados devassados. Desenvolve-se, assim, a denominada sociedade de consumo, ligada ao capitalismo, pressupondo o funcionamento livre do mercado.

Na China, um regime comunista de partido único, política e economicamente centralizado zelava para que o Estado se mantivesse fechado, evitando relações com outros países. Além de ser esta a caraterística dominante da sua história milenar, permitida pela sua própria riqueza e dimensão, a cedência a relações comerciais com os europeus no século XIX saiu-lhe desmesuradamente cara.

No entanto, vários fatores de que se destaca a globalização, vieram originar na China a vontade de enriquecer, produzir e consumir, de acrescentar à relevância política e militar, a relevância económica no mercado global, o que deu origem a uma espécie de contradição nos termos, um regime comunista capitalista.

Ora, é neste contexto que crédito ao consumo liberal e capitalista se mistura com o que usualmente é considerado totalitarismo comunista, originando o “Sistema de Crédito Social” chinês[2].

É um programa que, com total transparência[3], o Governo chinês criou e com toda a clareza explicou: “[Desejamos] permitir aos cidadãos de confiança que passeiem livremente sob o céu e dificultar aos desacreditados darem um único passo”, no Esboço de Planeamento para a Construção de um Sistema de Crédito Social (2014-2020). Conforme planeado, começou a ser implementado em 2014.

Para a sua concretização, foi instalado um sistema de vigilância generalizado, através de câmaras que, ligadas a potentes sistemas de inteligência artificial (AI – Artificial Intelligence) de reconhecimento facial, permitem verificar infrações no espaço público.

Segundo a CNN, na sequência da Pandemia de Covid-19, a vigilância alargou-se ainda mais, sendo instaladas câmaras à porta, e até dentro das casas, dos que estavam em quarentena.

Não tendo o Governo chinês capacidade para aceder a toda a informação que pretendia para a construção do seu sistema, estabeleceu “parcerias” com empresas “privadas”, essencialmente de comércio online, que a recolhiam principalmente para estabelecer classificações (scores) em que iriam basear as suas decisões sobre a concessão ou recusa de crédito ao consumo.

A Sesame, por exemplo, terá ligação direta à base de dados do Supremo Tribunal do Povo que possui uma lista negra, em tempo real, dos que desrespeitam as sentenças dos tribunais, incluindo devedores. Com base nessa informação as pessoas podem ser banidas de acesso a crédito, impedidas de comprar bens mais caros e de viajar (não podem, por exemplo, adquirir bilhetes de avião ou comboio). O objetivo seria compeli-las a cumprir as decisões judiciais.

Shazeda Ahmed, em estudo disponível no Citizen Lab da Univesidade de Toronto, analisa o sistema do “Sesame Credit’s social credit score”.

Assim, o crédito vai estando menos ligado à confiança e mais ligado à tecnologia e à Inteligência Artificial que determinam, com base num sistema de recolha e tratamento de informação instituído na sociedade, quem tem ou não acesso e em que condições ao crédito em geral e ao crédito ao consumo em particular. Determinam também, dentro de lógica semelhante, quem é bom ou mau cidadão, com as simpáticas ou dramáticas consequências de tal classificação.

[1] Tipifica o Código Civil, no seu artigo 1142º, que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.” e trata a usura, no artigo 1146º, limitando os juros possíveis.

[2] Informação mais detalhada em artigo da revista Wired “The complicated truth about China’s social credit system”, aqui.

[3] Cfr, por exemplo, notícia publicada no Jornal de Negócios, disponível aqui.

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