A reparação de bem por terceiro, a expensas do devedor, na empreitada de consumo – um caso prático

Doutrina, Jurisprudência

Imagine-se o seguinte caso prático[1]:

“A” é proprietário de um veículo motociclo da marca Cavallino Rampante, modelo XPTO, adquirido no ano de 2015. Em 16.03.2021, a Cavallino Rampante Motor S.p.A. anunciou o recall de um conjunto de motociclos do modelo XPTO, entre os quais o de “A”, por força da deteção de uma desconformidade no processo de fabrico das viaturas, cuja resolução passaria por uma atualização técnica – substituição da caixa de velocidades. Nessa sequência, em 25.03.2021, “A” contactou “B”, centro de assistência oficial da Cavallino Rampante, para realização da atualização técnica no seu motociclo, serviço que teve lugar em 30.03.2021.

Em 11.04.2021, no decurso da primeira deslocação descrita com o motociclo após a atualização técnica, “A” não conseguiu engrenar a 3.ª e 5.ª velocidades, o que não o impediu de completar a viagem nem levou “A” a entregar o motociclo a “B” para verificação da causa da anomalia. Em 17.04.2021, “A” participou com o motociclo num passeio de amigos e, nessa ocasião, com o motociclo em andamento, “A” voltou a não conseguir engrenar a 3.ª e 5.ª velocidades, tendo ficado com a sensação de que a viatura estava em “ponto morto” entre mudanças. Ato contínuo, “A” decidiu imobilizar o veículo e contactar a Almeida e Filhos, Lda. para efetuar o reboque do motociclo e sua condução até às instalações de “D”, a fim de esta última efetuar um diagnóstico ao estado da viatura.

No âmbito do diagnóstico ao estado do motociclo de “A” e com a autorização deste para proceder à desmontagem da caixa de velocidades da viatura, “D” verificou que a caixa de velocidades apresentava forquilha em mau estado (“empenada”). Em 10.05.2021, a pedido de “A”, “D” elaborou orçamento para substituição da caixa de velocidades do motociclo, com o valor total de € 700,00 (setecentos euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor. O diagnóstico ao veículo foi efetuado sem o conhecimento de “B”.

“A” pretende que “B” seja condenado a assumir o custo total da reparação do veículo motociclo, a efetuar por “D”. Tem “A” direito à indemnização peticionada?

O DL n.º 67/2003 (“RVBC”)[2] estabelece um regime especial aplicável à compra e venda de bens de consumo, bem como aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços e, ainda, à locação de bens de consumo (art. 1.º-A)[3]. Enquanto corolário do princípio pacta sunt servanda, consagrado no art. 406.º do Código Civil, àquele que se dedica profissionalmente à venda de bens ou à prestação de serviços cumpre assegurar que a sua prestação material é conforme com o contrato celebrado com o consumidor, isto é, garantir que o conteúdo da sua obrigação, com as características e qualidades acordadas com o contraente mais débil da relação jurídica, encontra identidade no bem efetivamente entregue ou no serviço, de facto, prestado (arts. 2.º-1 e 3.º-1).

Assim, mediante alegação e prova da ocorrência, no momento da entrega do bem pelo vendedor (ou prestador de serviços), de facto(s) que preencha(m) uma ou mais das hipóteses enunciadas no art. 2.º-2 do RVBC[4], o consumidor pode prevalecer-se de qualquer um dos direitos previstos no art. 4.º-1 do RVBC, não sujeitos a qualquer hierarquia no seu exercício (art. 4.º-5, a não ser que tal se revele impossível ou constitua abuso de direito), a saber, os direitos de reparação e substituição do bem sem quaisquer encargos, o direito de redução adequada do preço e do direito de resolução do contrato – e, cumulativamente, o direito de indemnização por perdas e danos resultantes de falta culposa do cumprimento da obrigação de conformidade (arts. 12.º-1 do RVBC e 798.º do Código Civil) –, quando a falta de conformidade se manifestar dentro do prazo da garantia legal de conformidade de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respetivamente, de coisa móvel ou imóvel (art. 5.º-1).

E, facilitando a árdua tarefa de demonstração de que o vício ou defeito pré-existia ao momento da entrega (entenda-se: do fornecimento material) do bem, com a qual está onerado o consumidor, o legislador consagrou uma presunção de anterioridade, de acordo com a qual “[a]s faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa [por se tratar de um bem de desgaste rápido ou sujeito a um prazo de validade] ou com as características da falta de conformidade [quando resultar de forma evidente que esta não se ficou a dever a circunstâncias relativas ao próprio bem e à sua utilização segundo os termos normais ou fixados pelas partes]” – art. 3.º-2 do RVBC[5] [6].

Por sua vez, ao profissional não basta a alegação e prova de que o mau estado e/ou o mau funcionamento do bem de consumo inexistiam no momento da celebração do contrato ou no momento da entrega do bem ao consumidor ou, até, que o bem funcionou normalmente durante algum tempo. Excetuando os casos em que o consumidor tem conhecimento do defeito ou ónus que incide sobre o objeto prestado ou tal limitação do bem tenha sido expressamente ventilada entre as partes em momento prévio à celebração do negócio (art. 2.º-3), a ilisão da presunção de anterioridade e consequente afastamento da garantia legal de conformidade dependem da alegação e prova da ocorrência de um facto posterior ao momento da entrega, imputável ao consumidor (e.g. por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito, do qual tenha resultado diretamente a falta de conformidade,não podendo o mau uso servir para evitar a responsabilidade do vendedor em relação a outras anomalias manifestadas pelo bem e que em nada se relacionem com o dito manuseamento indevido.

Para tal, afigura-se indiscutível que o profissional (no caso, o empreiteiro “B”) tem o legítimo interesse de, por si ou através de terceiro pelo mesmo contratado, proceder à reparação da coisa por ele modificada (no caso, o motociclo, no âmbito do recall). Afinal, se o empreiteiro se obrigou perante o consumidor (no caso, o dono da obra “A”) a executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, em caso de denúncia de desconformidade pelo segundo, deve o primeiro gozar da faculdade de proporcionar àquele o resultado da sua obrigação, o que implica ter a possibilidade de, num primeiro momento, conferir o estado do bem e, se se confirmar a existência da dita desconformidade, proceder à reposição da conformidade com o que foi acordado.

Neste seguimento, em face de uma situação de cumprimento defeituoso de contrato de empreitada, em regra, não assiste ao dono da obra o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar a desconformidade a expensas do empreiteiro, exigindo deste o imediato pagamento da quantia necessária à reparação da falta de conformidade entre a execução e o conteúdo do contrato.

Tanto assim que, como resulta do regime previsto nos arts. 1221.º e seguintes do Código Civil, em termos consentâneos com o princípio da prevalência da reconstituição natural sobre a indemnização por sucedâneo pecuniário (arts. 562.º e 566.º-1 do Código Civil), o direito a indemnização (art. 1223.º do Código Civil) reveste caráter subsidiário e desempenha uma função complementar (em relação a prejuízos que não tenham sido totalmente ressarcidos) aos demais meios jurídicos acessíveis ao dono da obra, hierarquicamente dispostos e oponíveis ao empreiteiro, a saber, o direito à eliminação dos defeitos, o direito à substituição da prestação (construção da obra de novo) e o direito à redução do preço (ou o direito à resolução do contrato, em caso de inadequação da obra ao fim a que se destina)[7].

Neste sentido, o princípio-regra que provém do regime civilístico da empreitada só cederá em casos de manifesta urgência ou em face de recusa ou de não realização, em prazo razoável, da reparação por parte do empreiteiro, de molde a evitar a produção de maiores danos[8]. Nestas hipóteses, é de admitir que o dono da obra, por si ou através de terceiro, promova a reposição da conformidade por meio de reparação e depois exija o reembolso das despesas assumidas ao empreiteiro.

Ora, revertendo ao caso em apreço, verifica-se que o veículo motociclo de “A” manifestou uma anomalia mecânica na caixa de velocidades (deixou de engrenar as 3.ª e 5.ª mudanças) – a qual foi substituída no âmbito da atualização técnica realizada em 30.03.2021 –, em momento posterior à entrega da viatura modificada por “B”, sendo que, em abstrato, mediante uma utilização prudente e diligente do veículo, a anomalia nele detetada não é incompatível com a natureza da coisa nem com as características da falta de conformidade. Porém, ao enviar o motociclo para “D”, a fim de este efetuar diagnóstico ao estado da viatura, que envolveu a desmontagem da caixa de velocidades (e não uma simples avaliação visual), sem o conhecimento e, logo, sem o assentimento prévio de “B” (isto já depois da ocorrência de um primeiro incidente com o mesmo veículo motociclo em 11.04.2021, sem que “A” tenha tomado qualquer diligência para aquilatar a causa do então sucedido, nomeadamente submetendo a viatura a análise por “B”), “A” inviabilizou o exercício, por “B”, da faculdade de verificar o exato estado do bem após a manifestação da alegada desconformidade e atestar, pelos seus próprios meios (ou por terceiro a quem “B” cometesse tal tarefa), a existência da anomalia, para, em função de tal análise, se fosse caso disso, proceder à reparação da coisa por si modificada.

Face ao exposto, concluímos que “A” não tem o direito de se substituir a “B” e mandar proceder a reparação do veículo por terceiro (“D”) e depois exigir-lhe o custo dessa reparação.


[1] Inspirado no caso decidido pela Sentença do CIAB, de 28.09.2020, proferida no Processo n.º 68/2020, de que fui relator, e no caso decidido pela Sentença do CICAP, de 05.02.2016, proferida no Processo n.º 1669/2015, de que foi relator Rui Saavedra.

[2] Pertencem a este diploma as normas que, sem indicação do respetivo diploma, adiante se mencionarem.

[3] Em relação ao contrato de empreitada, vigora um entendimento claramente maioritário na doutrina, que acompanhamos, segundo o qual, estando em causa um contrato de empreitada que tem por objeto a reparação ou modificação (ou limpeza) de um bem já existente (sem que essa intervenção se destine a torna-lo num bem que possa ser qualificado como novo), tal relação jurídica extravasa o âmbito objetivo de aplicação do RVBC. Sem embargo da alteração legislativa operada àquele diploma pelo DL n.º 84/2008, incluir, inovadoramente e de forma expressa, o contrato de empreitada de bens de consumo no universo de vínculos negociais sujeitos à sua malha normativa, importa atentar no facto de a letra da norma do n.º 2 do art. 1.º-A se referir, precisamente e modo não despiciendo, “aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada (…)” [sublinhado nosso], visando desta forma, segundo cremos, confinar o âmbito objetivo de aplicação do RVBC apenas ao contrato de empreitada (e outras prestações de serviço) em que é entregue ao consumidor um bem de que ele não dispunha anteriormente. Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2020, p. 278.

[4] Embora resulte da letra da norma o recurso à técnica legislativa da presunção iuris tantum (arts. 349.º e 350.º-1 e 2 do Código Civil), acompanhamos Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2020, p. 287, quando assinala que, no bom rigor jurídico, não se consagra ali uma genuína presunção legal de desconformidade, na medida em que “a verificação da desconformidade por referência aos critérios definidos afasta a possibilidade de prova em contrário, não sendo possível ao profissional provar a conformidade de um bem desconforme”.

[5] Jorge Morais Carvalho, Micael Martins Teixeira, Duas presunções que não são presunções: a desconformidade na venda de bens de consumo em Portugal, Revista de Direito do Consumidor, n.º 115 (janeiro – fevereiro de 2018), pp. 311-330. Assinalam estes autores que também a dita “presunção de anterioridade da desconformidade” não se trata, summo rigore, de uma presunção legal, visto que “(…) a ocorrência do facto base da suposta presunção de anterioridade – o facto demonstrativo da desconformidade – não permite necessariamente induzir, com base nas regras da experiência, que esse facto já se verificava no momento da entrega do bem – facto suposta, mas erradamente presumido.”

[6] Por via do Acórdão de 4 de junho de 2015, proferido no Processo n.º C-497/13 (Froukje Faber contra Autobedrijf Hazet Ochten BV), o TJUE declarou que “…o consumidor deve alegar e fazer prova de que o bem vendido não está em conformidade com o contrato em causa na medida em que, por exemplo, não possui as qualidades acordadas no referido contrato ou ainda é impróprio para o uso habitualmente esperado para esse tipo de bem. O consumidor está obrigado a provar a existência da falta [de conformidade]. Não está obrigado a provar a causa da mesma nem que a sua origem é imputável ao vendedor.”

[7] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coleção Teses, Almedina, pp. 347 e 353.

[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.05.2012; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.04.2019.

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