Quem pode escrever no Livro de Reclamações?

Jurisprudência

No final do ano transato, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) pronunciou-se sobre recurso de sentença que, mantendo decisões administrativas da ASAE, aplicou à sociedade arguida duas coimas no valor de € 3.750,00/cada, pela prática da contraordenação prevista no art. 3.º-1-b) do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, e condenou a mesma, após cúmulo jurídico, numa coima única, de € 5.000,00.

Fazendo uma síntese da demanda em causa, de acordo com os factos provados, na madrugada de 19.11.2017, os participantes “C” e “G” quiseram aceder ao interior de estabelecimento (discoteca), aberto ao público e em funcionamento, explorado pela sociedade arguida, o que foi negado por porteiro daquela. Ato contínuo, cada um dos participantes solicitou o Livro de Reclamações, o qual também lhes foi negado pelo funcionário, pelo que, a pedido dos denunciantes e ao abrigo do disposto no art. 3.º-4 do DL n.º 156/2005, uma patrulha da PSP deslocou-se ao local, sem que, contudo, tenha logrado remover a recusa da sociedade arguida em facultar o Livro de Reclamações, nesta ocasião manifestada pelo gerente daquela.

Nas conclusões das alegações de recurso, a sociedade arguida defendeu, no essencial, que, para efeitos do DL n.º 156/2005, os participantes “C” e “G” não podiam ser qualificados como “consumidores ou utentes”, na medida em que tal qualificação jurídica pressupõe a conclusão de uma relação de consumo com o profissional, o que, no caso, não chegou a verificar-se, donde faltaria pressuposto constitutivo do “direito a reclamar” dos referidos denunciantes.

Ora, em face das conclusões do recurso, a questão a resolver pelo TRP consistia em aferir se os participantes “C” e “G” deviam (ou não) qualificar-se como “consumidores ou utentes”, atento o facto de não terem sido admitidos a ingressar no interior do estabelecimento explorado pela sociedade arguida.

A este respeito, o TRP, subscrevendo integralmente a sentença recorrida, começou por apelar à ratio legis do DL n.º 156/2005 expressa no seu Preâmbulo, onde se pode ler o seguinte: “[o] livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. (…) A justificação da medida (…) prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho” [negrito nosso]. Como se refere, muito assertivamente, no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, “[o] princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações vai assim muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso concreto ser resolvido, na medida em que está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral nomeadamente, na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços”. Ademais, coloca-se também a necessidade de enfrentar, adequadamente, a tendencial resistência dos fornecedores de bens e prestadores de serviços a proceder à imediata entrega do Livro de Reclamações aos utentes ou consumidores que dele pretendam fazer uso.

Neste encalço, prossegue o aresto em análise, com apoio no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, exaltando que, da interpretação e aplicação conjugadas dos n.ºs 1 e 3 do art. 3.º do DL n.º 156/2005 resulta que o dever de o fornecedor de bens ou prestador de serviços apresentar imediatamente ao consumidor ou utente o Livro de Reclamações não se compadece com qualquer espécie de condicionamento, nomeadamente “considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta”. Tais aspetos apenas podem ser suscitados e discutidos no âmbito do procedimento espoletado pelo preenchimento da folha de reclamação, porquanto o profissional “não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for”.

E quanto à questão da alegada falta de qualidade subjetiva de “utentes ou consumidores” suscitada em relação aos participantes, estribando-se no disposto pelo art. 2.º-1 do DL n.º 156/2005, o TRP adere ao entendimento segundo o qual a disciplina normativa daquele diploma “(…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”, com vista à manutenção de “relações de clientela”, o que, como é bom de ver, não pode ter lugar na hipótese de o estabelecimento se encontrar encerrado (inaplicável na situação dos autos), mas já se verifica no cenário, alternativo, de uma pessoa ingressar no interior de uma loja física imbuída do espírito de realizar alguma compra, mas não chegar a fazê-lo. Nesta segunda situação conjeturada, apesar de não chegar a haver lugar à celebração de uma relação jurídica de consumo, não deixamos ter um “consumidor” para os efeitos do DL n.º 156/2005, a quem assiste, de modo inequívoco, o direito a solicitar a apresentação imediata do Livro de Reclamações.

Por conseguinte, e em suma, para efeitos de delimitação do âmbito subjetivo de aplicação do DL n.º 156/2005 – e exclusivamente para estes efeitos, atenta a definição diversa apresentada no art. 2.º-1 da Lei-Quadro de Defesa do Consumidor – deve entender-se por consumidor “toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços” – como preconizado no acórdão aqui em análise –, abarcando esta noção os “potenciais clientes” que apenas pretendem que lhes seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ainda que tal, efetivamente, não tenha lugar, donde tal qualidade não podia deixar de ser reconhecida aos participantes “C” e “G”, os quais apenas não acederam ao interior do estabelecimento da sociedade arguida porque esta lhes vedou o ingresso.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *