O que têm em comum Jane Birkin e Satoshi Nakamoto?

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Fundada em 1837, a marca Hermès remete-nos de imediato para um mundo de luxo e exclusividade. Grace Kelly, atriz e princesa do Mónaco, usava amiúde o sac à dépêches da marca francesa, o que levou a que mais tarde o modelo fosse rebatizado com o nome de “Kelly”[1].  Na década de 80, um encontro fortuito no aeroporto entre Jane Birkin e Jean-Louis Dumas, à data chefe executivo da Hermès, fez nascer o icónico modelo de carteiras “Birkin”, que foi recentemente considerado, por um estudo da empresa Baghunter[2], um investimento com maior retorno do que o investimento em ouro. De acordo com as conclusões apresentadas, o valor do retorno anual de uma Birkin é de 14,2%, em muito superior ao do ouro. Estudos à parte, a verdade é que não se conhece, sequer, o preço exato de uma Birkin. O modelo é tão exclusivo que é a própria marca que decide quem vai comprar, i.e., não basta querer e ter disponibilidade financeira para adquirir – uma curiosa relação de consumo cuja análise remeteremos para outras núpcias.

Façamos agora um fast forward para 31 de outubro 2008, data em que Satoshi Nakamoto, cuja existência ainda está por provar, publicou um white paper no qual propôs um novo sistema de troca de “dinheiro” eletrónico peer-to-peer[3] baseado em tecnologia blockchain, de registo distribuído, cujas primeiras fundações académicas haviam sido lançadas por David Chaum, em Berkeley[4], na década de 80 do séc. XX – a mesma década de criação do modelo Birkin.

De tema central de conversa de um nicho muito específico de interessados, com a rápida e vertiginosa valorização desta tecnologia, depressa termos como criptoativos, bitcoin, blockchain, distributed ledger technology, token, hash ou proof-of-work tornaram-se mundialmente populares e objeto de inúmeras análises e discussões que atravessam os mais diversos campos do conhecimento. Outro termo inevitável, NFT, surgiu, do ponto de vista substancial, em 2014, durante um evento de arte em Nova Iorque, no qual o casal Jennifer e Kevin McCoy apresentaram a sua obra em vídeo Quantum. NFT significa non-fungible token, ou seja, uma representação digital de um ativo real, sob a forma de um símbolo único e insubstituível[5]. Esta representação digital é criada na blockchain e pretende funcionar como um registo digital de autoria e propriedade. De que ativos reais falamos aqui? Praticamente qualquer realidade, embora a maior parte esteja relacionada com direitos de propriedade intelectual no sentido jurídico tradicional: uma obra de arte, um texto (v.g. primeiro Twitter publicado), música, jogos, fotografias, etc. NFT passou também a ser sinónimo de uma cultura de exclusividade artística e de um negócio que movimenta avultadas somas não só de criptomoedas, mas também de moeda com curso legal.

Em dezembro de 2021 o artista de NFT Mason Rothschild publicou uma coleção de 100 carteiras digitais (não no sentido de wallets, mas de representação digital de carteiras de senhora) à qual deu o título de “MetaBirkins”. Esta coleção surgiu no seguimento de um inusitado projeto anterior do mesmo autor, intitulado “Baby Birkin”, que foi vendido em Ether, criptomoeda da blockchain Ethereum, pelo equivalente a alguns milhares de euros.

Em janeiro de 2022 a Hermès intentou ação internacional contra Mason Rotschild, por uso indevido de marca registada, e utilizou como argumentos, entre outros[6]:

i) o facto de o artista prosseguir uma atividade especulativa e lucrativa através da criação, publicidade e venda de NFT com apropriação indevida da marca Hermès, tendo tornado público que pretendia enriquecer através da usurpação da marca; 

ii) a semelhança óbvia entre o design das carteiras “MetaBirkins” e do modelo Birkin original;

iii) ter sido criada uma confusão para o consumidor, uma vez que a Hermès não tem qualquer ligação ao artista e, por esse motivo, o prestígio de ter uma Birkin original não poderia ser aproveitado para o negócio de NFT em causa – os consumidores poderiam ser enganados e levados a crer que se tratava da mesma marca, com o mesmo peso socioeconómico;

iv) o registo de NFT “MetaBirkins” enquanto marca original constituir uma violação dos direitos de propriedade intelectual da marca Hermès;

v) o facto de terem sido criados estes NFT sem qualquer ligação à marca original poder enfraquecer a credibilidade e posicionamento da Hermès no mercado de luxo.

Mason Rotschild defendeu-se invocando o entendimento expresso no caso Rogers vs. Grimaldi (1988)[7], relativamente à ponderação expressão artística/direitos de propriedade intelectual argumentando que a liberdade criativa e artística se encontra protegida pela Primeira Emenda da Constituição americana e que o seu trabalho era puramente artístico e uma forma de crítica ao uso de peles de animais nas Birkin originais (as “MetaBirkins” foram desenhadas de modo que se parecessem com carteiras de pele falsa), em nada ferindo a marca ou aproveitando-se da mesma. Inclusivamente, nas redes sociais, Rotschild relembrou a forma positiva como a marca Campbell acolheu as famosas latas de sopa de Andy Warhol[8].

Contudo, o júri não concordou com o artista de NFT e considerou que os NFT desta natureza não se encontram abrangidos pela proteção à liberdade de expressão concedida pela Primeira Emenda, uma vez que não são considerados arte. O júri condenou Mason Rotschild ao pagamento de uma indemnização por danos à Hermès, no valor de cerca de 133 mil dólares[9] [10], dando razão à marca e a todos os que diziam que, caso não tivesse utilizado o nome Birkin, o artista nunca teria tido o sucesso que teve.

Atrevo-me a dizer que nem Jane Birkin, quando deixou cair os seus pertences no chão do aeroporto, à frente de Dumas, nem Satoshi Nakamoto, quando publicou o seu white paper, poderiam antecipar que os frutos dos seus trabalhos se cruzariam um dia mais tarde numa ação judicial com grande projeção, que opôs partes que procuram, ainda que de modo diverso, a exclusividade e a autenticidade, e na qual se convocaram o direito à liberdade de expressão, o direito do consumo e direito de propriedade intelectual. Mas esta decisão judicial, por ser a primeira que se debruça sobre NFT e a necessidade de oferecer clareza aos consumidores no que diz respeito ao uso de propriedade intelectual no âmbito específico de uma rede blockchain, é importante e abre caminho para uma discussão necessária. Resta saber se abrirá também um precedente.



Qualquer opinião expressa neste artigo é da exclusiva responsabilidade do autor, não representando a opinião do Banco de Portugal.


[1] https://saclab.com/fr/story-of-the-hermes-kelly/

[2] https://baghunter.com/pages/hermes-birkin-values-research-study

[3] Bitcoin: a peer-to peer electronic cash system, https://bitcoin.org/bitcoin.pdf

[4] Computer Systems Established, Maintained and Trusted by Mutually Suspicious Groups, 1982 https://evervault.com/papers/chaum

[5] Já se abordou anteriormente aqui no blog o conceito de NFT.

[6] https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/zjvqkmgnxvx/IP%20HERMES%20TRADEMARKS%20complaint.pdf

[7] https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/695/112/2345732/

[8] https://news.bloomberglaw.com/ip-law/hermes-gets-win-over-metabirkins-in-first-nft-trademark-trial

[9] https://www.nytimes.com/2023/02/08/arts/hermes-metabirkins-lawsuit-verdict.html

[10] https://www.bloomberglaw.com/public/desktop/document/HermesInternationaletalvRothschildDocketNo122cv00384SDNYJan142022?doc_id=X1Q6ODL37A82

Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

A inovadora “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor” desenvolvida no Brasil por Marcos Dessaune

Doutrina

Por Marcos Dessaune, advogado e autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor

A partir de 2009, com o estabelecimento de metas de produtividade para o Poder Judiciário brasileiro, os tribunais pátrios desenvolveram uma jurisprudência defensiva para evitar a multiplicação de processos[1]. Erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, tal jurisprudência sustenta que só configura dano moral a dor, o sofrimento, o vexame ou a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, afetando o seu bem-estar. Mero aborrecimento, dissabor, irritação ou sensibilidade exacerbada não caracterizam dano moral, visto que tais situações não são intensas e duradouras a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo[2].

Esse entendimento reverbera um conceito de dano moral que, embora já esteja superado pela doutrina mais recente, continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro, a ponto de se falar numa “tradicional confusão” entre danos extrapatrimoniais e morais presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos na matéria[3].

Diante dessa compreensão doutrinário-jurisprudencial tradicional e da necessidade de se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, tornou-se necessário ampliar o conceito de dano moral no Brasil, para que fosse possível reconhecer novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa e, ao mesmo tempo, para que se permitisse a reparação autônoma de mais de uma espécie deles oriunda do mesmo evento danoso.

Assim sendo, os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados no Brasil de “danos morais”, podem ser identificados e classificados com base no bem jurídico lesado. O dano moral lato sensu (ou em sentido amplo), enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, pode ser atualmente conceituado como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O dano moral stricto sensu (ou em sentido estrito), enquanto espécie de dano extrapatrimonial (ou moral lato sensu), pode ser definido como o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa.

Além da ampliação do conceito de dano moral, tornou-se necessário superar o argumento do “mero aborrecimento” na jurisprudência brasileira, o que vem sendo realizado no país pela inovadora Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que identificou e valorizou o tempo do consumidor como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado e, depois da sua publicação, ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional.

Confrontado com a jurisprudência erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, debrucei-me sobre o seguinte problema: na atual sociedade de consumo brasileira, o consumidor tem sido corriqueiramente levado a despender o seu tempo e a se desviar das suas atividades cotidianas para enfrentar problemas de consumo criados pelos fornecedores. Indaga-se então: essas situações configuram algum dano extrapatrimonial reparável ou, diversamente, representam meros dissabores ou aborrecimentos normais na vida do consumidor?

Ao publicar o primeiro estudo sobre a problemática em 2011, na obra intitulada Desvio Produtivo do Consumidor[4], e avançando em 2017 na Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor[5], obras que pioneiramente identificaram e valorizaram o tempo do consumidor como um bem jurídico, percebi que não se sustentava a compreensão jurisprudencial brasileira de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado e imposto pelo próprio fornecedor, representaria “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do vulnerável, e não um dano extrapatrimonial ressarcível.

Os substantivos “dissabor” e “aborrecimento” traduzem um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo “mero”, que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada no argumento do “mero aborrecimento” está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo (“dissabor” ou “aborrecimento”). Porém, segundo se infere dessa mesma jurisprudência, tal sentimento é pequeno, trivial ou sem importância (“mero”), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral compensável.

Com efeito, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo equívoco é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são a sua liberdade, o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar, como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc.. O terceiro equívoco é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte, o lógico seria concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu reparável.

Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo, um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial, pela alteração prejudicial do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor.

Logo, concluí que o fornecedor, ao criar um problema de consumo no mercado e se eximir da sua responsabilidade de saná-lo voluntária, tempestiva e efetivamente, leva o consumidor em estado de carência[6] e situação de vulnerabilidade a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto. Consequentemente, o consumidor sofre um dano extrapatrimonial de natureza existencial, cujo prejuízo é presumido e deve ser reparado pelo fornecedor que o causou. Denominei esse evento danoso “desvio produtivo do consumidor”, ao tempo que percebi que ele não se amolda à jurisprudência tradicional, segundo a qual ele representaria “mero dissabor ou aborrecimento”, normal na vida do consumidor.

Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se no Brasil nos últimos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, como o tempo da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, como o dano estético, o dano temporal, o dano existencial, etc., bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso.

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor promoveu a ressignificação e a valorização do tempo do consumidor, elevando-o à categoria de um bem jurídico, o que vem possibilitando a superação da jurisprudência brasileira baseada no argumento do “mero aborrecimento”, que fora construída sobre bases equivocadas, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral, apontando esse tempo como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, e ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional, a do desvio produtivo do consumidor.

De acordo com a última pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei, no dia 15-12-2022, a expressão exata e inequívoca “desvio produtivo” já havia sido citada em 45.144 acórdãos de todos os tribunais estaduais, distrital e regionais federais do País, além do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2022, publiquei a 3.ª edição da Teoria do Desvio Produtivo ampliada para o Direito Administrativo e o Direito do Trabalho[7], obra que pode ser conhecida em www.marcosdessaune.com.br.


[1] BARRETO, Miguel. A indústria do mero aborrecimento. 2. ed. Juiz de Fora: Editar, 2016. passim.

[2] STJ, REsp 844736/DF, j. 27-10-2009, rel. p/ acórdão Min. conv. Honildo Amaral de Mello Castro.

[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[4] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. 1. ed. São Paulo: RT, 2011.

[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. rev. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017.

[6] Estado de carência corresponde ao estado de desconforto ou de tensão gerado pela ativação de certa carência (necessidade, desejo ou expectativa), estado esse que impulsiona a pessoa a obter certo objeto ou a alcançar determinada meta e, geralmente, não permite demora.

[7] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2022.

Prazo para a reparação ou substituição ao abrigo da garantia legal

Doutrina

Em caso de uma falta de conformidade do bem com o contrato que se manifeste dentro do período de responsabilidade do profissional, o consumidor tem direito à reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição (art. 15.º-1 do DL 84/2021).

Segundo o art. 18.º-1-a), a reparação ou a substituição deve ser efetuada a título gratuito, ou seja, nos termos do art. 2.º-a), “livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais”. A lista não é exaustiva, pelo que outras despesas relativas à reposição da conformidade do bem, como custos com peritagens ou avaliações, devem considerar-se incluídas. Portanto, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela reparação, incluindo os custos do transporte do bem para o vendedor.

Nos termos do art. 18.º-2-b), a reparação ou a substituição deve ser efetuada num prazo razoável, ou seja, o “mais curto prazo necessário para a sua conclusão” (considerando 55 da Diretiva 2019/771).

Nesse mesmo considerando, pode ler-se que “os Estados-Membros deverão poder interpretar o conceito de prazo razoável para a conclusão da reparação ou da substituição, prevendo prazos fixos que podem ser geralmente considerados razoáveis para a reparação ou substituição, em especial no que respeita a categorias específicas de produtos”.

Utilizando esta possibilidade, prevê-se no art. 18.º-3 que “o prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior”.

Esta norma é particularmente infeliz. Sob a aparência de melhorar a posição do consumidor, por se prever um prazo fixo, vem, na verdade, apresentar-se esse prazo como mínimo, permitindo a sua extensão nas situações aí indicadas. Na verdade, pouco se acrescenta em relação à cláusula geral do prazo razoável, que perde efeito. Temos dúvidas, até, que, na Diretiva, se esteja a pensar em prever simultaneamente a cláusula do prazo razoável e a previsão de um prazo fixo.

Os profissionais que não pretendam cumprir o prazo de 30 dias irão sempre invocar uma das exceções constantes do preceito, o que irá também aumentar consideravelmente a litigiosidade.

É, no entanto, necessário ter em conta um requisito adicional relativo à reposição da conformidade que pode limitar os efeitos negativos para o consumidor de uma reparação ou de uma substituição mais prolongada no tempo.

Assim, a reparação ou a substituição deve ser efetuada também, como prevê o art. 18.º-2-c), “sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina”.

A concretização do conceito indeterminado de “grave inconveniente” deve ter em conta o caso concreto, relevando, nomeadamente, circunstâncias relativas à relação entre o consumidor e o bem.

A reposição da conformidade terá de ser feita em menos de 30 dias se o consumidor tiver um grave inconveniente com a reparação ou a substituição nesse prazo. É o que sucederá na generalidade dos casos.

Causa grave inconveniente ao consumidor não ter telemóvel durante 30 dias? À partida, se não tiver outro, a resposta será positiva. Isto significa que a reposição da conformidade em 30 dias não cumpre os requisitos previstos na lei. Na verdade, ficar sem telemóvel por mais de um ou dois dias já causará grave inconveniente a um consumidor normal. Isto significa que, em regra, um ou dois dias é o prazo máximo para a reparação ou a substituição do telemóvel sem ser causado um grave inconveniente ao consumidor. Estas observações valem para a generalidade dos bens, relembrando-se que a análise deve ser feita em concreto.

O profissional poderá utilizar, ainda assim, o tempo razoável para as operações de reparação ou de substituição, mas tem de fazer alguma coisa para que o consumidor não tenha um grave inconveniente. A solução mais adequada, nestes casos, passa pela disponibilização de um bem de substituição que satisfaça as necessidades do consumidor enquanto o bem reparado ou o novo bem não é entregue.

A ausência de reposição da conformidade a título gratuito, num prazo razoável (em princípio, 30 dias) e sem grave inconveniente para o consumidor, além de constituir ilícito contraordenacional, nos termos do art. 48.º-1-d), permite ao consumidor exercer de imediato o direito à redução do preço ou de resolução do contrato, como prevê o art. 15.º-4-a)-ii). Refira-se ainda que, segundo o art. 16.º, “nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem”. Neste caso, a substituição deve ser imediata, não se permitindo sequer ao profissional avaliar previamente a existência de falta de conformidade. Essa avaliação terá de ser feita apenas posteriormente.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie – futebol, xadrez, arte ou publicidade

Doutrina

A 20 de novembro de 2022, teve início oficial um dos eventos mais importantes do planeta, denominado “Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2022”. Este Mundial, a que de tão conhecido e relevante basta chamar assim, tem vindo a ser alvo de polémicas de várias espécies, quase todas más. As suspeitas de corrupção e os atentados aos direitos humanos são as que mais se destacam.

No entanto, para além disso e da competição propriamente dita, surgem também outras coisas extraordinárias e no dia da inauguração acontece uma muito interessante. Fala-se muito de xadrez e contempla-se arte. Ou publicidade. Arte publicitária, que evidencia como são ténues as fronteiras em muitos campos. Sob um fundo absolutamente clássico, com uma perfeita quase ausência de cor, estão um baú sobre o qual assenta uma mala de mão, com padrão de quadrículas castanhas, nas quais estão dispostas peças de xadrez. Sentados, dois homens, um de cada lado, pousam na mala uma mão e, na outra mão, a cabeça, numa atitude absolutamente compenetrada e absorvida. Parece que abraçam suavemente o tabuleiro improvisado. Tudo é equilibrado, harmonioso. A luz, a sombra, a cor, as posições, as peças caídas e as peças em jogo, tudo concorre para a incrível obra de arte fotográfica de Annie Leibovitz, extraordinária artista que, entre muitos outros, fotografou a rainha Isabel II. Os homens são Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, as malas são Louis Vuitton, marca criada em 1854, a jogada de xadrez é do terceiro jogo entre Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, no torneio da Noruega de 2017, que terminou num empate.

No Twitter, recentemente adquirido por Elon Musk, que rapidamente se pôs a despedir muitas pessoas, a marca de luxo publica que “Victory is a state of mind”, relembra que tem acompanhado os mais importantes eventos desportivos e explica que a fotografia celebra os dois mais talentosos jogadores de futebol da atualidade. Tudo verdade. Ganhar é um estado de espírito que, aliado a muito suor e trabalho pode levar à vitória, a Louis Vuitton é tão antiga e emblemática que acompanhou muitos desportistas e outros viajantes ilustres e ricos nas suas deslocações. A primeira classe do Titanic, por exemplo, estava carregada de bagagem assim acomodada. É usualmente aceite que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de futebol do mundo. Além de que Annie Leibovitz conseguiu mais uma assinalável proeza fotográfica. Nada foi deixado ao acaso, o mais ínfimo detalhe daquele improviso foi meticulosamente planeado. Até o xadrez. Podiam ter colocado aleatoriamente umas peças que ficassem bem em cima das quadriculas do padrão, para as quais jogadores de futebol estariam, em pose, a olhar, mas não. Deram-se ao trabalho de escolher um lance duma partida entre os melhores jogadores de xadrez do mundo e, ainda mais precisamente, uma que acaba num empate. Este detalhe, também ele, além da subtileza, evidencia um enorme respeito, tanto para com os jogadores de xadrez, como para com os jogadores de futebol retratados.

A publicação, a foto, a situação tornou-se viral nas redes sociais e, no Mundial de futebol, o xadrez ganhou lugar através de algo que  tudo indica ser uma excelente campanha publicitária.

Daqui dois pontos principais há a assinalar. O primeiro, é o fascínio que o xadrez ainda origina nas pessoas e, também, a capacidade que tem de fazer vender. Relembre-se como o mundo, em plena guerra fria, esteve suspenso de alguns jogos e desatou a comprar tabuleiros e peças e a jogar. Por exemplo, o filme “O Prodígio” mostra-o no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, em que o americano Bobby Fisher venceu o soviético Boris Spassky. Em final de 2020, a série “The Queen’s Gambit”, inflamou as audiências e fez disparar o consumo em várias áreas, naquilo que se poderá denominar “efeito Netflix”. Relembre-se, também, como foi impressionante quando o Deep Blue, uma máquina, venceu em 1997 Garry Kasparov, o campeão de xadrez da época. O xadrez tem associada a ideia de inteligência, de ponderação, de visão, de segurança, de precisão e muitas outras que o tornam adequado a simbolizar a superioridade humana, a qualidade individual de uma pessoa, a representar a ideal qualidade de um povo, de um país, da humanidade.

O segundo ponto a assinalar é a natureza esquiva e fluida da publicidade. Num duplo sentido. Por um lado, a sua clássica proximidade à arte. As sopas Campbell de Andy Warhol, não deixaram de ser sopas quando o artista resolveu fazer delas uma obra de arte, curiosamente, com a inicial oposição dos detentores da marca. A fotografia de Annie Leibovitz não deixa de ser uma manifestação artística por fazer publicidade.

No entanto, urge questionar, publicidade a quê? Sem dúvida, à marca das malas. Temos, no entanto, de admitir que cada um dos jogadores retratados são também publicitados. Embora já de si, pareçam possuir o toque de Midas, transformando em ouro tudo em que tocam, qualquer deles tem associado um fortíssimo merchandising e o reforço da divulgação da sua imagem vai certamente refletir-se em aumento de vendas. Ganham os próprios, ganham as empresas que produzem e vendem bens e serviços com o seu selo, ganham os clubes, os países e, certamente, muito mais gente que não nos ocorre. O próprio Mundial, certamente também ganha, sendo ainda mais divulgado. O Twitter e as redes sociais em que foto e publicação circulam, certamente ganham em visitas, que terão originado mais receitas em publicidade e outras. Este é o outro lado, do segundo ponto a assinalar. A publicidade tornou-se difusa, esquiva, fluída, indireta, de fronteiras muito pouco claras. A publicidade tradicional, ainda predominante na primeira década deste século, não só está a cair em desuso, como é acompanhada por novas formas que seriam muito difíceis de prever há algum tempo e que apresentam contornos pouco nítidos, que tornam difícil a sua qualificação e enquadramento jurídico. Salienta-se, pela relevância e amplitude que pode alcançar a “publicidade” nas redes sociais, quer através de algo que se torna viral, trazendo de repente para a ribalta marcas de bens ou serviços, quer através do trabalho dos influencers, mais sistemático, que vão apresentando, ou usando, ou comentando coisas, sítios que, por isso, vendem mais. Com o advento dos chatbots e o desenvolvimento do processamento de linguagem natural, também a publicidade pode passar a ser personalizada, sendo apresentada a cada pessoa que conversa com a máquina os produtos que procura, ou os que mais lhe podem interessar. Se juntarmos a realidade virtual, aumentada e mista, que temos vindo a abordar em posts recentes, acabamos por poder estar a ser avassalados, permanentemente, por comunicação que promove, com vista à sua comercialização, quaisquer bens ou serviços. Transformamo-nos em destinatários permanentes de publicidade, mais ou menos do mesmo modo como nos tornamos produtores e consumidores de dados pelo simples facto de existirmos e, principalmente, de usarmos um smartphone.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie, fazem desporto, indústria, arte, história, promovem o futebol, o xadrez, as viagens, a moda, a fotografia, fazem publicidade, originam o aumento de vendas de coisas várias, geram tráfego nas redes sociais e na internet, alimentam a big data e a inteligência artificial, forçam os cânones do Direito, de todos os Direitos. Integram uma realidade cuja complexidade se adensa progressivamente, tornando difícil a sua análise e compreensão.

Vale-nos o Mundial que, nos relvados atafulhados de publicidade, nos vai manter fixos no jogo, algo à escala humana.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.

A Web Summit no presente do futuro do consumo

Doutrina

Estamos no day after da Web Summit que, como a maioria das pessoas em Portugal sabe, aconteceu em Lisboa, de terça a sexta. Neste fim de semana, na próxima semana e, se tudo correr bem, nos próximos meses, os contactos entre quem se encontrou por ali vão dar frutos contribuindo, entre outras coisas, para alterar as relações entre profissionais e consumidores, o modo como se consome e para trazer novos desafios ao Direito que tem de conseguir enquadrar e dar solução aos desenvolvimentos que os mercados vão impondo.

A Web Summit, já em pré-registo para 2023, fechou a 4 de novembro, com o Presidente da nossa República a cumprimentar Paddy Cosgrave, o CEO da organização, com um carinho que lhe pode ter deslocado um ombro e a anunciar-lhe que a feira vai ficar em Portugal até 2028, como está combinado, mas também depois, como espera que se irá combinar, com a promessa de aumento de construção do espaço, feita pelo mayor anterior, agora Ministro das Finanças, a dever ser cumprida pelo mayor atual, de nome Moedas, sob a atenta vigilância do PR, que do palco o avisou. Paddy, a tentar recuperar o equilíbrio do aperto de mão de entrada, do rombo que a pandemia fez nas suas finanças e do facto de ter de encaixar o evento numa área que afinal ainda não cresceu, não disse que sim, nem que não.

Para quem por lá andou é muito evidente que o espaço se torna exíguo para este retorno pleno ao presencial. Estiveram mais de 70.000 participantes de cerca de 160 países e o maior número de sempre de startups e investidores. Incluindo o Altice Arena, quatro pavilhões de consideráveis dimensões a que foi possível acrescentar um quinto improvisado, uns food trucks e mais umas barracas e estruturas amovíveis, ou não fosse uma feira, ainda assim a simples circulação é difícil, implicando uma permanente gincana, no perpetuo movimento que é necessário entre a visita às empresas, às mais de dez salas e palcos de Conferências e de apresentações que estiveram sempre a abarrotar e as reuniões entre os participantes. Ser o ponto de encontro é o mantra da Web Summit: “Where the tech world meets”.

A efervescência impera e, saudavelmente, são mais as perguntas que as respostas. Impera, também, a investigação. Toda a gente está a fazer investigação. Ligada a Universidades, a empresas, a ambas, a consórcios, a grupos de várias naturezas, investigar, desenvolver, experimentar, falhar, voltar a tentar é o dia a dia de quase todos. Qual vai ser o resultado é o que menos importa, porque é pelo caminho que vai acontecendo o que é relevante. Vive-se um ambiente de dúvida, mas metódica e criadora.

Se há uma certeza, é a de que é tudo muito rápido, sempre mais rápido, por várias razões. A principal, provavelmente, é o facto de que a par do desenvolvimento autónomo de tecnologias diferenciadas, se vai dando a interligação entre elas, o que provoca saltos, muitas vezes inesperados e intensos. É o que está a acontecer, por exemplo, com o denominado metaverso. A big data e a inteligência artificial aliadas à realidade virtual e aumentada, que foi caminhando para a denominada realidade mista, estão a levar a indústria e o comércio a novos modelos de negócio, alterando-se a relação entre profissionais e consumidores e a maneira como estes atuam no(s) mercado(s). Este assunto foi já abordado neste blog, a propósito dos smartglasses. A conjugação daquelas tecnologias, com as potencialidades da blockchain, o aumento da capacidade de computação e a imaginação, estão na base do enorme desenvolvimento daquilo a que se vem apresentando como o metaverso. Do que vimos, os mundos “alternativos”, virtuais, mistos, em que a realidade física se mistura com a realidade virtual, têm tudo para se tornarem incontornáveis. Saíram, definitivamente, do campo restrito dos jogos, para entrarem no do trabalho, da produção, da venda de bens e produtos, físicos e virtuais.

Naomi Gleit, responsável de produto da Meta (que veio a incluir o Facebook, o Instagram, o Whatsapp e mais uma série de outras empresas e/ou marcas), será provavelmente uma das pessoas mais habilitadas a explicar e no palco principal da Web Summit, fê-lo da melhor forma possível: com toda a simplicidade. Disse que o metaverso é o futuro da internet, que vamos experienciar a três dimensões. É isto. O metaverso é, pois, a internet a três dimensões. A gestora afirmou ainda, entre várias outras coisas muito interessantes, que “A Meta não vai ser dona do metaverso”, como nenhuma empresa é dona da internet e que o metaverso vai acontecer, com ou sem a Meta. Vão existir vários players no mercado a fornecer as plataformas e os serviços para que todos possam vir a usar.  

O tema das realidades virtual e aumentada, na internet, não é nada novo. Por certo que muitos se lembram do Second Life que, lançado em 2003, já tinha avatares e permitia uma vida paralela num mundo virtual. E, desde há vários anos que jogadores passam grande parte do seu tempo dentro de mundos virtuais em jogos crescentemente complexos e com ambientes próximos da “realidade real”. Também a experiência de óculos como os da Google, do Facebook ou outros é relativamente comum. Já para não falar do fenómeno incrível que dominou o verão de 2016 quando o mundo se lançou numa insana caça aos Pokemons, descarregando a aplicação para smartphone do jogo que ganhou 25 milhões de utilizadores no mês de lançamento. Nas suas casas e nas ruas, parques, campos e cidades pelo mundo fora, as pessoas corriam, de telefone em punho, em direção de desenhos animados virtuais, que através do telemóvel apareciam no mundo físico. Depois passou. No entanto, de um modo bastante corrente, estas tecnologias foram ficando, tornando-se quase banais. Muitos de nós usam, sem grandes reflexões prévias, aplicações de telemóvel para experimentar, online, roupa, ou como é que um móvel ficaria na sua sala, ou algo de semelhante. Isto é, seja em jogos, seja comercialmente, estas tecnologias vão estando incluídas no cardápio do cidadão comum que as usa porque é divertido e prático, sem pensar muito, nem antes, nem depois

O tema ainda será relativamente de nicho, mas do que foi possível observar, dir-se-ia que vai haver uma explosão de metaverso, muito rapidamente. Se vai ser um hype, ou se virá para ficar e dominar, é o que se verá. Por vezes há temas em grande ascensão que, de repente, estagnam. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os veículos autónomos e com os robots “humanoides”, quem sabe se por evidenciarem demasiado a possibilidade de a humanidade ser ultrapassada por máquinas.

A humanidade não gosta de pensar nessas coisas e, talvez por isso e por não ser o melhor para o negócio, terá havido várias pressões para que fosse desconvidado o linguista, cientista cognitivo e filósofo Noam Chomsky que, juntamente com Gary Markus, da Universidade de Nova York foram “Desmascarar a grande mentira da Inteligência Artificial” (Debunking the great AI lie), no último painel da Web Summit, numa Altice Arena a rebentar pelas costuras. O foco foi nas habilidades do GPT-3 e de outros sistemas semelhantes de processamento de linguagem natural (NLP) que, laboriosamente, colocam palavras a seguir a palavras, naturalmente não percebendo patavina do que fazem, pelo menos do ponto de vista do que é a construção e a compreensão humana da linguagem. Quando uma pessoa diz ou escreve “Este quadro de Picasso é bonito” estará a equacionar o conceito de beleza, objetivo e subjetivo, a comparar a obra com outras que conheça do autor, com a de outros autores, com a realidade que representa e a pensar em mais uma infinidade de coisas que contribuem para o juízo que profere. Quando o GPT-3 diz ou escreve a mesma frase, está a contabilizar as vezes que foi dita e escrita a propósito do quadro em causa e a calcular, com base na quantidade descomunal de informação a que acede e que consegue processar, qual a melhor sucessão de palavras que pode apresentar no contexto em que é solicitado. O que pode dar sarilho.

São, pois, de grande pertinência as advertências em relação à Inteligência Artificial, principalmente quando foram feitas atempadamente, há décadas.

Com a convergência de tecnologias, o aumento da informação, da capacidade de computação e das habilidades da inteligência artificial, a caminho do metaverso, riscos e benefícios sobem de escala.

A proteção dos consumidores, vamos ver como se fará, mas poder-se-á admitir como provável a existência de novos elencos de informação, que o avatar do consumidor, como o próprio, aceitará. 

Era uma vez a Shein na Web Summit

Doutrina

No segundo dia da Web Summit 2022, em Lisboa, Donald Tang, vice-presidente executivo da chinesa Shein, subiu ao palco. Muito disse sobre o modelo de negócio, as revoluções na indústria da moda e a devoção ao consumidor. Sobre violação de direitos humanos nas cadeias de abastecimento, exploração laboral, contrafação e outros que tais, nem uma palavra. Mas, também, sem moderador, quem é que ia lembrar-se realmente de perguntar?

Tang soube onde colocar a tónica. Entre “a escolha de colocar o cliente no centro é a nossa estrela do Norte” e “estamos sempre a ouvir o consumidor”, foi possível perceber que a Shein aposta na produção de até 200 unidades de cada peça, apenas avançando para maiores volumes se a intenção de compra for clara – isto é, se se notar uma tendência de consumo[1].

Ao nível da sustentabilidade a ideia não parece mal pensada: menos produção, menos recursos, menos desperdício em vão. Um desaproveitamento de “apenas 2%”, nas palavras do americano. Há aplausos que precisam de ser dados. O problema começa quando Tang afirma, quase orgulhoso, que entre o design do bem e a respetiva confeção passam no máximo 14 dias, podendo até passar menos[2]. Uma coisa é certa – a Shein ouve mesmo o consumidor. Pudesse o trabalhador ter a mesma sorte.

Obrigatoriedade de produção de 500 peças por dia por funcionário, 2 a 4 cêntimos de pagamento por unidade, 12 a 18 horas de trabalho diário, 1 dia de descanso por mês é quanto vale, no fim de contas, uma empresa avaliada em biliões de dólares[3].

Depois de tantas benesses, Tang afirmou ainda que a gigante se prepara para integrar o mercado em segunda mão, acompanhando as mais recentes tendências de consumo circular. Um intencional “queremos revolucionar a moda tradicional através da tecnologia, tornando-a acessível e inclusiva” conquistou, certamente, a assistência. Mas só quando Tang deixou cair um ponderado “se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco” é que a plateia de ativistas se revoltou. Ou talvez não, que não estava lá nenhum.

Para todos os que assistiam, Donald Tang esclareceu, de uma vez por todas, que o nome da marca não se pronuncia “Shine”, antes “She-in”. Em qualquer dos casos, ficou mais do que evidente que She is definitely In trouble.


[1] Observador, “Vice-presidente da Shein («diz-se She In»): ‘Se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco’”, 2.11.2022, disponível em https://observador.pt/2022/11/02/vice-presidente-da-shein-diz-se-she-in-se-querem-tornar-o-mundo-mais-sustentavel-venham-trabalhar-connosco/. Renascença, “Empresa chinesa de ‘fast fashion’ lança plataforma para venda em segunda mão”, 2.11.2022, disponível em https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2022/11/02/empresa-chinesa-de-fast-fashion-lanca-plataforma-para-venda-em-segunda-mao/306291/.

[2] Jornal de Negócios, “Shein demora 10 a 14 dias entre design e fabrico de cada peça”, 2.11.2022, disponível em https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/web-summit/detalhe/e-o-primeiro-dia-oficial-da-web-summit-no-palco-principal-fala-se-da-alexa-da-amazon.

[3] David Hachfeld e Timo Kollbrunner, “Toiling Away for Shein Looking Behind the Shiny Façade of the Chinese «Ultra-Fast Fashion» Giant”, 11.2021, disponível em https://stories.publiceye.ch/en/shein/. Channel 4, Untold: Inside the Shein Machine (documentário), 17.10.2022. Madeline A. James, “Child Labor in Your Closet: Efficacy of Disclosure Legislation and a New Way Forward to Fight Child Labor in Fast Fashion Supply Chains”, in The Journal of Gender, Race & Justice, vol. 25, n.º 1, 2022, disponível em https://jgrj.law.uiowa.edu/online-edition/volume-25-issue/child-labor-in-your-closet-efficacy-of-disclosure-legislation-and-a-new-way-forward-to-fight-child-labor-in-fast-fashion-supply-chains/.

O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.