A responsabilidade das plataformas digitais pela segurança dos consumidores – A propósito do Ac. do STJ, de 10/12/2020

Jurisprudência

Numa realidade em que a pegada digital de cada consumidor se tornou maior do que a sua pegada física, é no reino das plataformas que o consumidor se vê, de forma evidente, mais fragilizado.

Certo é que a corrida entre o direito e as tecnologias está desequilibrada desde o momento da partida. Todavia, há que notar que cada vez mais são feitos esforços para fornecer ao consumidor a rede de proteção que lhe é devida, tanto a nível legislativo, como jurisprudencial.

Por ora, em Portugal, a responsabilidade das plataformas vem regulada pelo Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro, que transpôs para o direito interno a Diretiva 2000/31/CE.

Apesar de navegar nas redes sociais ser talvez o hobbie mais generalizado dos consumidores, as plataformas são, em regra, qualificadas enquanto meros prestadores intermediários de serviços, o que resulta na sua generalizada desresponsabilização.

Todavia, apesar de não estarem sujeitos a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam, ou a uma obrigação de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, os prestadores intermediários de serviços não estão isentos de deveres, sendo estes, por exemplo, o de informar as autoridades competentes sobre as atividades ilícitas que se desenvolvam por via dos serviços que prestam, o de satisfazer os pedidos de identificar os destinatários dos serviços com quem tenham acordos de armazenagem, o de cumprir prontamente as determinações destinadas a prevenir ou pôr termo a uma infração, bem como o de fornecer listas de titulares de sítios que alberguem, quando lhes for pedido.

Mas o que são afinal os prestadores intermediários de serviços em rede? De acordo com o disposto no art. 4.º-5 do diploma que regula o comércio eletrónico, serão prestadores intermediários de serviços em rede os que “prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha, independentes da geração da própria informação ou serviço”. Nesta definição cabem então o Facebook, a Booking, o Instagram, o TikTok e muitos outros gigantes que dominam o mercado.

Enquanto entidades dominantes do oligopólio gerado em volta da atenção do consumidor, não estarão estas plataformas em posição de assumir uma maior responsabilidade pela segurança dos seus consumidores? Afinal, apesar de não serem elas as responsáveis pelos conteúdos partilhados, a verdade é que é devido à sua existência que o discurso de ódio tem um palco acessível a qualquer interessado, ou que qualquer um se pode tornar num revendedor de produtos falsificados sem comprometer a sua identidade.

O diploma português que regula o comércio eletrónico prevê três modalidades de serviços em rede: o simples transporte (art.º 13), a armazenagem intermediária (art.º 14) e a armazenagem principal (art.º 15). O véu da responsabilidade é mais denso nas últimas duas modalidades do que na primeira.

De facto, muito se tem escrito sobre os prestadores intermediários de serviços em rede, mas em termos nacionais, foi apenas a 10 de dezembro de 2020 que foi esboçada uma definição jurisprudencial para tal figura ambígua. Assim, e de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/12/2020, no âmbito do Processo n.º 44/18.6YHLSB.L1.S2, que teve como relator Ferreira Lopes, os prestadores intermediários de serviços em rede são, de facto “as pessoas, singulares ou coletivas, que intervindo de forma autónoma, permanente e organizada, criam e disponibilizam os meios técnicos para que um determinado conteúdo circule na internet”.

Neste Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça veio desresponsabilizar uma sociedade de direito espanhol (a Ré), pelo uso, no seu sítio na internet, dos sinais distintivos de que a Autora é titular, sem as devidas autorizações necessárias para efeitos legais.

Uma vez que a Recorrente se dedica à “criação e desenvolvimento, alojamento, assessoria, gestão e exploração de páginas web, plataformas de formação e páginas de venda online e gestão de cobrança e pagamentos por conta dos seus clientes”, prestando serviços de intermediação, e não sendo responsável pelos conteúdos colocados nos endereços eletrónicos que detém, o Tribunal decidiu que a mesma deve ser classificada enquanto prestadora intermediária de serviços em rede, dado que “os serviços que presta são de ordem meramente técnica, (…) sem qualquer intervenção nos conteúdos da informação ou serviço, que eram da exclusiva responsabilidade do cliente”.

Assim, apesar de ser titular do site a partir do qual foi violado o direito da Autora, o Tribunal deliberou que a mesma não será responsável pelos conteúdos aí disponibilizados, o que só sucederia, à luz do princípio do art. 12.º, se de alguma forma participasse ou tivesse interferência sobre o conteúdo da informação transmitida ou armazenada. Ademais, nos termos do art. 16.º do diploma sob análise, a “Recorrente só seria responsável se soubesse ou devesse ter conhecimento da ilicitude da atividade ou informação, ou que a ilicitude fosse manifesta”, o que, na opinião do Tribunal a quo, não sucedeu.

Desta forma, regista-se mais uma decisão que propugna pela desresponsabilização das plataformas, ainda que neste caso, o alvo da decisão, não tenha sido um consumidor.

Impressiona, contudo, que o Tribunal não tenha analisado, para resolução desta questão, o que já muito foi discutido a nível europeu e, nomeadamente, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

A nível europeu, e conforme descrito supra, vigora a Diretiva 2000/31/CE, que naturalmente consagra o mesmo sistema de desresponsabilização que o diploma português que a transpõe.

Releva, para estes efeitos, o Processo C‑324/09 (L’Oréal v. eBay), que esclarece a definição do conceito de “ter conhecimento”, consagrado no art. 14.º-1 da Diretiva (e no 16.º-1 do Decreto-Lei 7/2004).

No fundo, o TJUE considera que, quando o prestador de serviços em rede, em vez de se limitar a uma prestação neutra, através de um processamento puramente técnico e automático dos dados fornecidos pelos seus clientes, desempenha um papel ativo suscetível de lhe facultar um conhecimento ou um controlo destes dados, não deverá ser considerado enquanto prestador intermediário e beneficiar da isenção de responsabilidade, nos termos previstos na legislação que aborda o comércio eletrónico. Ademais, é suficiente para levantar este véu de irresponsabilidade que tal operador tenha tido conhecimento de factos ou de circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude em causa. Para estes efeitos, o TJUE esclarece que o “conhecimento”, neste caso deve ser interpretado no sentido de que se refere a qualquer situação na qual “o prestador em causa toma conhecimento, por qualquer forma, desses factos ou circunstâncias, abarcando as situações em que o operador de um sítio de comércio eletrónico toma conhecimento da existência de uma atividade ou de uma informação ilegais na sequência de um exame efetuado por sua própria iniciativa, e em que a existência dessa atividade ou dessa informação lhe é notificada”. Neste segundo caso, se é verdade que uma notificação não pode automaticamente retirar o direito à isenção de responsabilidade sob análise, podendo as notificações revelar-se insuficientemente precisas e demonstradas, não é menos certo que constitui, regra geral, um elemento que o juiz nacional deve levar em conta para apreciar, tendo em consideração as informações transmitidas ao operador, a realidade do conhecimento por este dos factos ou das circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse constatar a ilicitude.

Por outro lado, há que referir que o considerando 42 da Diretiva 2000/31/CE esclarece que as situações de exoneração de responsabilidade abrangem exclusivamente os casos em que a atividade da sociedade da informação exercida pelo prestador de serviços reveste carácter “puramente técnico, automático e de natureza passiva”, o que implica que o referido prestador de serviços “não tem conhecimento da informação transmitida ou armazenada, nem o controlo desta”.

Neste contexto o TJUE defendeu, no âmbito dos processos apensos C‑236/08 a C‑238/08 (Google France v. Louis Vuitton) que, a fim de verificar se a responsabilidade do prestador de serviços da sociedade de informação poderia ser limitada, “deve examinar‑se se o papel desempenhado pelo referido prestador é neutro, ou seja, se o seu comportamento é puramente técnico, automático e passivo, implicando o desconhecimento ou a falta de controlo dos dados que armazena”.

Sem prejuízo destas conclusões jurisprudenciais, a Comissão Europeia, na sua Comunicação da Comissão sobre a Economia Colaborativa, avança que a isenção de responsabilidade sob análise permanece limitada à prestação de serviços de armazenagem e não se estende a outros serviços ou atividades realizadas pelas plataformas. Tal isenção não exclui, nomeadamente, a responsabilidade decorrente da legislação de proteção de dados pessoais, no que diz respeito às atividades da própria plataforma.

Acresce que o simples facto de uma plataforma também realizar outras atividades – além de fornecer serviços de armazenagem – não significa necessariamente que essa plataforma já não possa contar com a isenção de responsabilidade relativamente aos seus serviços de armazenagem. Em qualquer caso, a forma como as plataformas concebem o seu serviço da sociedade da informação e implementam medidas voluntárias para combater conteúdos ilegais em linha continua a ser, em princípio, uma decisão empresarial e a questão de saber se beneficiam da isenção de responsabilidade intermédia deve ser sempre avaliada caso a caso.

Em termos conclusivos, é possível assumir que tanto a Diretiva 2000/31/CE como o Decreto-Lei 7/2004 estão largamente desatualizados em relação à realidade em que vivemos. Estes instrumentos foram pensados e construídos numa época em que o Tik Tok ainda não dominava os dias de grande maioria dos menores de idade ou em que ter uma página de Facebook ou Instagram não era requisito essencial para construir uma amizade.

Neste contexto, tem grande relevo o Digital Services Act, uma iniciativa recente da Comissão Europeia, já analisada por nós em posts anteriores: aqui, aqui e aqui.

Jogador de póquer online: consumidor ou profissional?

Jurisprudência

No Processo C‑774/19, o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a qualificação como consumidor de um jogador de póquer online.

Antes de mais, cumpre enquadrar a relação jurídica em causa. Trata-se de um contrato celebrado entre uma pessoa singular (B. B.) e uma sociedade comercial com sede em Malta (Personal Exchange International Limited, doravante “PEI”), com recurso a cláusulas contratuais gerais por esta pré-elaboradas. O contrato tem como objeto a prestação de serviços de jogos de fortuna e azar em linha, no sítio de internet www.mybet.com.

O litígio surgiu na sequência de a “PEI” haver retido uma quantia depositada na conta de jogador de B. B., por este ter, alegadamente, incumprido uma obrigação decorrente daquele contrato, “ao criar uma conta de utilizador suplementar, para a qual utilizou o nome e os dados de A. B.”.

Ora, perante isto, B. B. propôs uma ação contra a “PEI” nos tribunais eslovenos. A sociedade maltesa invocou a incompetência internacional do tribunal, exceção julgada improcedente nas decisões das duas primeiras instâncias nacionais desse Estado-Membro, ambas alvo de recurso. Assim, o pedido de decisão prejudicial foi apresentado ao TJUE pelo Supremo Tribunal da Eslovénia.

O TJUE foi chamado a interpretar o artigo 15.°-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (aplicável por o litígio se reportar a factos anteriores a 10 de janeiro de 2015; v. artigo 81.º do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).

A questão era saber qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir aquele conflito plurilocalizado. B. B., entendia serem os tribunais eslovenos, por considerar ser consumidor (artigos 15.º-1 e 16.º-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001). Já a “PEI” entendia serem os tribunais malteses, segundo a regra geral de competência, prevista no artigo 2.º-1 do mesmo Regulamento, nos termos da qual “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”, uma vez que entendem que B. B. deve ser considerado jogador de póquer profissional (solução que resultaria também do clausulado pré-elaborado pela “PEI” e assinado, sem qualquer margem negocial, por B. B.).

Estamos, portanto, perante uma questão processual/adjetiva que depende de uma questão material/substantiva: para aferirmos qual o tribunal competente para dirimir o litígio em causa temos que determinar, primeiramente, se podemos considerar esta relação como uma relação de consumo.

Note-se que o TJUE vem defendendo uma interpretação restritiva das normas excecionais relativas à competência internacional, concluindo que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, são abrangidos pelo regime previsto pelo referido regulamento em matéria de proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca, ao passo que essa proteção não se justifica em casos de contratos que incluem algum objetivo ligado a uma atividade profissional.

Está na altura de introduzirmos alguns elementos fáticos que, segundo o Supremo Tribunal esloveno, serão importantes para a solução da questão:

  1. B. teve de aceitar as condições gerais apresentadas pela “PEI” por ser economicamente mais fraco e juridicamente menos experiente;
  2. B. não declarou oficialmente a atividade de jogador de póquer profissional;
  3. B. não propôs a sua atividade a terceiros mediante remuneração, nem teve patrocinadores;
  4. B. vive dos rendimentos provenientes dos jogos de póquer desde 2008;
  5. B. jogava póquer, em média, 9 horas por dia útil;
  6. B. ganhou cerca de € 227 000 em aproximadamente 13 meses (perto de € 17 450 por mês).

Recentrando a questão, o TJUE teve que decidir se um particular que adere a um clausulado pré-elaborado por um profissional e que não declarou oficialmente a sua atividade, nem ofereceu essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado ainda pode ser considerado consumidor, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.° 44/2001, quando esse particular joga o jogo em causa durante um grande número de horas por dia e obtém ganhos significativos daí provenientes.

Na decisão, o TJUE não considerou determinante o facto de B. B. ter ganho quantias significativas graças a jogos de póquer online, entendendo que, por razões de previsibilidade e segurança jurídica, não fixando o Regulamento um limiar quantitativo quanto ao seu âmbito de aplicação, não se pode limitá-lo em função dos montantes ganhos, ademais tratando-se de um jogo de fortuna e azar, em que tanto as perdas como os ganhos são imprevisíveis e potencialmente avultados.

O Tribunal considerou também irrelevantes os alegados conhecimentos que B. B. possui e que lhe permitiram obter tão significativos ganhos, relembrando que para a qualificação como consumidor releva a posição contratual na relação em causa e não a sua informação e conhecimentos respeitantes ao objeto mediato do contrato (convoque-se o exemplo clássico do sapateiro que adquire um par de sapatos numa loja de um centro comercial).

Por fim, o TJUE relativizou o facto de B. B. jogar com muita regularidade (média de 9 horas por dia útil), considerando mais relevante não ter declarado oficialmente a atividade profissional de jogador de póquer e não ter oferecido essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado.

Assim, concluiu que B. B. poderia ser considerado consumidor e que os tribunais eslovenos eram internacionalmente competentes para dirimir o seu litígio com a “PEI”.

Quanto à bondade da decisão, poder-se-á apenas questionar se, mais do que os elevados montantes ganhos e a regularidade com que B. B. jogava, não deveria ter pesado na decisão do Tribunal o facto de B. B. ter como única fonte de rendimentos o jogo de póquer. Contrariamente às restantes, esta circunstância não foi escalpelizada pelo TJUE, e talvez fosse o mais forte indício a favor da tese de que a relação em causa não fosse de consumo, principalmente tendo em consideração o entendimento restritivo que o TJUE vem fazendo do conceito de consumidor para os efeitos que interessam neste caso: a competência internacional.

Independentemente disso, não podemos deixar de notar que, embora B. B. possa não ser profissional, atendendo aos proveitos retirados do jogo online (cerca de € 17.500/mês), amador não seria certamente.

Publication alert: Dziubak is a Fundamentally Wrong Decision

Jurisprudência

To protect consumers against unfair terms, Article 6(1) Unfair Contract Terms Directive (UCTD) makes unfair terms inapplicable. For example: the contract includes an unfair penalty clause for early termination? The consumer does not have to pay anything for early termination. Kásler and Káslerné Rábai carved an exception to this rule: national judges can substitute unfair terms when not doing so would have excessively negative consequences for the consumer.

In Dziubak, the Court of Justice of the European Union (hereinafter, “the Court”) was asked to develop this exception further. In a recent publication in the European Review of Contract Law, I explain that the Court – with all due respect – got it fundamentally wrong. This blogpost summarizes the main mistakes in this decision.

What is ultimately at stake in Dziubak is nothing less than the level of protection enjoyed by consumers under EU law and the institutional autonomy of Member States. The Court restricted both legal values with surprisingly poor reasoning. Two of the questions asked by the national judge deserve particular attention. First, to what extent Article 6(1) allows the judge to change “the form of the legal relationship”. Second, whether one could rely on “national provisions not of supplementary law but of a general nature”.

In essence, the answers to these two questions are fundamentally wrong because they: 1) misquote both the directive and a relevant precedent; 2) rely on party autonomy in an asymmetric relation; 3) fail to consider basic EU law principles such as sincere cooperation and effectiveness, but also the institutional autonomy that directives grant to the Member States; 4) finally, the Court ignores the pertinent submission of the professional about the content of national law. Let us consider these points in turn.

1) The Court misquotes the UCTD in holding that the only provisions of national law that can be presumed to be fair are those that “have been subject to a specific assessment by the legislature”. Actually, the relevant provision and recital of the UCTD mention the “provisions or principles of international conventions” as well as the “provisions of the Member States which directly or indirectly determine the terms of consumer contracts”. Do you have a specific assessment by the legislature of a principle of international conventions or of provisions that indirectly determine the terms of contracts? Not necessarily, if at all.

Moreover, the Court cites Dunai to hold that the specific term under consideration in Dziubak belongs to the main subject matter of the contract. The problem is that Andriciuc had explained exactly why this is not the case! Long story short, the Court quoted the wrong paragraph of Andriciuc (43 instead of 40) in past decisions. This error led to an obvious mistake in Dziubak.

2) EU consumer law is premised on the existence of an imbalance in the relationship between consumers and professionals. The asymmetrical character of the relationship justifies suspicion over the fairness of the exchange. It is thus perplexing that both the Advocate General and the Court show preoccupation for an “intervention capable of altering the balance of interests sought by the parties and excessively encroaching on contractual autonomy”.

3) On multiple occasions, the Court has invoked the need to ensure the effectiveness of consumer rights to limit the institutional autonomy of Member States. The most famous example of this trend is the ex officio doctrine – the duty of judges to review of their own motion contract terms. This move is accompanied with suspicion by some commentators, as it touches upon the procedural autonomy of Member States. It is thus perplexing that, without carefully identified grounds in EU law, the Court stepped over the institutional autonomy of Member States enshrined in directives – the choice of how to best allocate the power to protect the rights granted by directives in the national legal system.

4) Finally, the professional had pointed out that there was a provision of national law that is clear enough to be applicable even under the strict parameters given by the Court. This is the case since the provision relied upon in Kásler and Káslerné Rábai to fill the gap was obviously vaguer than the one mentioned by the professional in the present case.

For the reasons sketched here and the additional ones that you can read in the European Review of Contract Law, Dziubak is a fundamentally wrong decision and it belongs to the dustbin of history.

Renúncia à garantia legal

Jurisprudência

No passado dia 5 de novembro, foi proferido no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) o acórdão relativo ao Processo n.º 325/17.6T8AMD.L1-2, com um tribunal composto pelos juízes desembargadores Jorge Leal (relator), Nelson Borges Carneiro e Pedro Martins. O caso é particularmente interessante e a fundamentação clara e acertada, tendo o tribunal revogado a decisão da primeira instância, substituindo-a por uma de condenação do profissional.

Em traços gerais, o autor é um consumidor que adquiriu um motociclo à ré por € 8000, tendo este avariado menos de dois meses depois da data da celebração do contrato.

Ainda antes de avançarmos na análise dos restantes factos do caso, discute-se no processo se o autor poderia ser qualificado como consumidor, em especial no que respeita à questão de saber se foi a ré (sociedade comercial) a vender o carro ou se esta era apenas um intermediário numa relação entre particulares [1]. O tribunal conclui que a ré é a vendedora. A este propósito, importa referir que parece ter sido seguida, de forma acertada, a regra estabelecida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Caso Wathelet: “o conceito de vendedor (…) deve ser interpretado no sentido de que abrange também um profissional que atua como intermediário por conta de um particular e que não informou devidamente o consumidor comprador do facto de que o proprietário do bem vendido é um particular, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto”. Ou seja, se alguém se apresenta como vendedor, responde como vendedor. Quanto ao elemento teleológico do conceito de consumidor, tendo-se dado como provado que “o autor fazia uso do motociclo, essencialmente, em deslocações de lazer”, o uso é considerado não profissional.

Verificando-se uma desconformidade no motociclo e tendo o consumidor procedido à sua denúncia tempestiva, defende o tribunal que o consumidor tem o direito à reparação, correspondente ao seu pedido. O problema surge na medida em que o consumidor assinou um documento aquando da celebração do contrato, com o título “Termo de responsabilidade e renúncia de garantia”, que menciona a renúncia a “qualquer tipo de garantia e nas condições em que se encontra, por mim já verificadas (prescindindo assim do direito à Lei nº 67 de 8 de abril de 2003)”.

É pena que não conste da decisão do TRL a fundamentação utilizada pelo tribunal de primeira instância para decidir no sentido da improcedência dos pedidos, tendo em conta que o afastamento da aplicação desta cláusula de renúncia me parece evidente.

O TRL centra-se precisamente na análise da questão da validade da cláusula de renúncia à garantia. Seguimos integralmente o excelente raciocínio desenvolvido a este propósito pelo tribunal.

O art. 10.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece que “é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma”, como a que está subjacente ao caso em análise, remetendo, no entanto, para o art. 16.º da Lei de Defesa do Consumidor. É particularmente interessante o n.º 2, que estabelece que a nulidade “apenas pode ser invocada pelo consumidor ou seus representantes”.

Será que o objetivo desta norma consiste em limitar o poder de atuação do tribunal, conhecendo da nulidade em causa num caso em que esta não seja expressamente invocada pelo consumidor, mas em que este pretenda desvincular-se do conteúdo ilícito? A resposta deve ser negativa. O objetivo consiste em proteger adicionalmente o consumidor e não em desprotegê-lo face à posição do profissional [2].

O tribunal resolve a questão de forma acertada: “nesta ação o A. negou, pois, tacitamente, a validade da cláusula de renúncia (art.º 217.º n.º 1 do CC). Essa manifestação de vontade deve ser considerada pelo tribunal, pois consubstancia o levantamento do único obstáculo que a lei prevê ao conhecimento, pelo tribunal, da aludida nulidade: a vontade do consumidor”.

Nota-se ainda que uma interpretação da qual resultasse a aplicação da cláusula de renúncia, contra o interesse declarado do consumidor, além de contrariar frontalmente a teleologia do regime, seria contrária ao direito europeu, uma vez que a Diretiva 1999/44/CE estabelece claramente que essa cláusula não vincula o consumidor (art. 7.º-1).

O tribunal também se pronuncia nesta decisão sobre a questão da indemnização relativa ao dano da privação do uso do veículo. Trata-se de um tema muito interessante, mas cuja análise deixarei, eventualmente, para um texto posterior.

Este acórdão deveria passar a ser utilizado (e analisado) em qualquer curso de Direito do Consumo. Levanta questões muito interessantes e diversificadas, com uma argumentação sólida e atualizada por parte do tribunal.

 

[1] Refira-se que o consumidor tinha mesmo assinado uma declaração «intitulada “Declaração e termo de responsabilidade”, datada de 30 de setembro de 2016, da qual resulta que adquiriu a viatura particularmente sem garantia e no estado em que se encontrava, responsabilizando-se pelo que pudesse suceder com a moto, “durante o tempo em que circular em nome de Tiago (…)”».

[2] Sobre esta questão, de forma mais aprofundada, v. Jorge Morais Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, Almedina, 2017, p. 198.

As aparências iludem – Opção pré-validada, sim ou não?

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu, no passado dia 11 de novembro, uma decisão no Processo C-61/19 em que abordou o tratamento de dados pessoais e proteção da vida privada, nomeadamente o conceito de “consentimento”, como manifestação de vontade livre, específica e informada.

Este Acórdão, visto em pormenor, é extenso e intenso, tanto no tratamento das várias questões que, à sua maneira, enuncia e resolve, como numa série de outras em que nos faz pensar, o que provavelmente justifica mais do que um post neste blog.

Começando pelo princípio como é habitual e desejável, há que explicar do que se trata. Ninguém melhor que o próprio Tribunal para o fazer, pelo que o seu Comunicado à Imprensa n.º 137/20 pode ser lido na íntegra aqui e o Acórdão aqui.

Resumidamente, neste processo existe um pedido decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Regional de Bucareste, no âmbito de um litígio em que a Orange România SA (Orange) apresentou um recurso destinado a obter a anulação de uma decisão através da qual a ANSPDCP (Autoridade Nacional para a Supervisão do Processamento de Dados Pessoais da Roménia – ANS) lhe aplicou uma coima por ter recolhido e conservado cópias de títulos de identidade dos seus clientes sem o consentimento válido destes e lhe ordenou que destruísse essas cópias.

Aquele pedido teve por objeto a interpretação do artigo 2.°, alínea h), da Diretiva 95/46/CE, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, bem como do artigo 4.°, ponto 11, do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) que revoga aquela Diretiva, questionando-se quais são as condições que, naquele âmbito, devem ser preenchidas para se poder considerar que uma manifestação de vontade é “específica e informada” e “expressa livremente”.

Decide o Tribunal, após estabelecer que cabe ao responsável pelo tratamento dos dados o ónus da prova relativa ao preenchimento dos requisitos do consentimento, o seguinte: “Um contrato relativo ao fornecimento de serviços de telecomunicações que contém uma cláusula segundo a qual a pessoa em causa foi informada e deu o seu consentimento para a recolha e a conservação de uma cópia do seu título de identidade para fins de identificação não é suscetível de demonstrar que essa pessoa deu validamente o seu consentimento, na aceção destas disposições, para essa recolha e para essa conservação, quando

–  a opção relativa a essa cláusula foi validada pelo responsável pelo tratamento dos dados antes da assinatura desse contrato ou, quando

–  as estipulações contratuais do referido contrato são suscetíveis de induzir a pessoa em causa em erro quanto à possibilidade de celebrar o contrato em questão mesmo que se recuse a autorizar o tratamento dos seus dados, ou quando

–  a livre escolha de se opor a essa recolha e a essa conservação é afetada indevidamente por esse responsável, ao exigir que a pessoa em causa, a fim de se recusar a dar o seu consentimento, preencha um formulário suplementar onde fique registada essa recusa.”.

Vamos aqui brevemente analisar a parte em que o Tribunal considera que a existência num contrato de “uma cláusula segundo a qual a pessoa em causa foi informada e deu o seu consentimento”, não é suficiente para demonstrar que “essa pessoa deu validamente o seu consentimento, na aceção destas disposições “ se “a opção relativa a essa cláusula foi validada pelo responsável pelo tratamento dos dados antes da assinatura desse contrato”.

Em primeiro lugar, assinale-se o uso da expressão “Cláusula”, termo tipicamente relativo ao conteúdo dos contratos, para algo que consubstanciaria uma autorização para tratamento de dados pessoais, à partida alheia ao próprio contrato. Tanto mais que, se o Tribunal assim não considerasse, isto é, se considerasse que o tratamento de dados estaria relacionado com a própria execução do contrato, a causa de legitimidade para o tratamento não seria a do artigo 6.º, n.º 1, alínea a) do RGPD, isto é, não seria o consentimento do titular dos dados. A relação entre a proteção de dados e outras áreas do Direito está a crescer e a impor-se. A propósito, e sobre a relação com o Direito do Consumo, pode-se ler neste blog comentário ao recente Acórdão Privacy International.

Em segundo lugar, assinale-se o uso da expressão (dar, ou não dar), “validamente o seu consentimento”, quando o que estaria em causa seria existir ou não uma causa de licitude do tratamento dos dados. Isto é, efetivamente não se trataria de uma questão de validade de um consentimento, expressão que remete de novo para a típica terminologia contratual, nomeadamente a relativa às declarações negociais, essas sim perfeitas ou com vícios que poderiam levar à invalidade. No caso da proteção de dados, do que se trata é de saber se um determinado tratamento de dados pessoais cabe na regra geral da ilicitude, ou em alguma das suas exceções. No RGPD, regulam essencialmente os artigos 6.º a 11.º. Na Diretiva 95/46, era também de (i)licitude que se tratava, prevendo o seu artigo 5.º que ” Os Estados-membros especificarão, dentro dos limites do disposto no presente capítulo, as condições em que é lícito o tratamento de dados pessoais.”. Sabemos que a expressão “consentimento válido”, no âmbito da proteção de dados, se vulgarizou. A questão é saber se é usada por estar em causa a (in)validade, ou se o seu uso se deve a falta de termos e conceitos que cubram realidades que, não sendo novas, só recentemente suscitam grande atenção.

Em terceiro lugar, saliente-se que o TJUE, no Acórdão Orange, quando trata da existência de opção validada “pelo responsável pelo tratamento dos dados antes da assinatura desse contrato”, socorre-se da célebre decisão do Acórdão Planet 49. Seria uma boa ajuda se os casos tivessem realmente uma substância comum o que, embora ambos se refiram ao “consentimento” relacionado com a proteção de dados e incluam um formulário, não parece acontecer. Ao nível do soundbite, dos títulos de notícias e dos resumos superficiais, a questão aparenta ser idêntica já que tem a ver com a pré-validação de uma opção em que está vertida uma declaração de consentimento do titular para tratamento dos seus dados pessoais antes da finalização do contrato.

No entanto, no Acórdão Planet 49, em que a empresa organizou um jogo promocional no seu sítio Internet onde se inscreviam os que pretendiam participar, existia uma quadrícula de seleção relativa à instalação de cookies para recolha de dados pessoais que “estava pré-validada”. O que significa que o formulário online já trazia a declaração “Concordo” preenchida (Ponto 27.). Decidiu o Tribunal que “um consentimento dado através de uma opção pré-validada não implica um comportamento ativo por parte do utilizador de um sítio Internet.” (Ponto 52.).

Diferente parece ser a situação no caso Orange, já que existiria um processo negocial, com base num guião, em que intervinham diretamente os “agentes de venda” que antes da celebração do contrato informavam os clientes “designadamente sobre as finalidades da recolha e da conservação das cópias dos títulos de identidade, bem como sobre a escolha de que os clientes dispõem quanto a essa recolha e a essa conservação, antes de obterem oralmente o consentimento desses clientes para que se proceda a essa recolha e a essa conservação. Segundo a Orange România, a opção relativa à conservação das cópias de títulos de identidade era, assim, validada unicamente com base no acordo livremente expresso nesse sentido pelos interessados quando da celebração do contrato.” (Ponto 43.). Isto é, a ser verdade este procedimento, e o mesmo não é contestado, o consentimento expresso, livre, específico e informado constaria daquela declaração verbal. Acresce que, após essa manifestação, seria o agente de venda a preencher o campo correspondente à validação, tudo indica que por indicação ou, pelo menos, com a concordância do cliente. Isto é, ao contrário do Acórdão Planet 49, a opção não vinha pré-validada. O formulário seria preenchido, é certo que pelo “agente de venda”, de acordo com a manifestação do consentimento verbal do cliente. O que reduz esta específica questão à prova da declaração verbal de consentimento, não se tendo conhecimento de que houvesse discrepâncias entre o que era declarado e o que era preenchido. No final do processo negocial, o cliente assinava o contrato que incluía aquele consentimento, ou a sua recusa.

Conclui-se, portanto, que no caso Orange, ao contrário do que acontecia no caso Planet 29, não estava realmente em causa a existência de uma opção pré-validada pela empresa, que o cliente precisasse de desmarcar para retirar o seu consentimento.

Acórdão Privacy International – Entre o Direito do Consumo, a proteção de dados e a segurança nacional

Jurisprudência

A relação entre Direito do Consumo e a proteção de dados é um tema que tem sido alvo de discussão face às situações de sobreposição dos dois ramos que têm surgido nos últimos tempos. Sinal disso têm sido os reenvios prejudiciais submetidos ao Tribunal de Justiça da União Europeia, como o que deu origem, no passado mês de outubro, ao Acórdão Privacy International

Neste, foi analisada a Diretiva 2002/58, que aborda o tratamento de dados pessoais no contexto do setor das comunicações eletrónicas. Ora, de acordo com esta, as operadoras de telecomunicações terão de armazenar dados de comunicações e de tráfego, de modo a, por exemplo, dar cumprimento ao direito a faturas detalhadas dos consumidores (art. 7.º). Contudo, embora esses dados devam ser conservados, a Diretiva consagra também o princípio da confidencialidade, no sentido de não se poder intercetar ou vigiar as comunicações feitas pelos consumidores, a não ser em casos excecionais (art. 5.º).

Assim, vemos que esta Diretiva regula este confronto entre as exigências derivadas da proteção do consumidor (direito a faturas detalhadas e, portanto, à exigência de conservação de dados pessoais extraídos das comunicações feitas) e a necessidade de proteger a privacidade dos assinantes, bem como dos seus dados pessoais (postulando a regra da confidencialidade). Contudo, este balanço apresenta exceções, nomeadamente as plasmadas no art. 15.º da Diretiva, exceções essas que estiveram na base do Acórdão Privacy International. De facto, estabelece esse artigo que o princípio da confidencialidade poderá ser derrogado pela legislação nacional dos Estados-Membros, caso tal derrogação constitua uma medida necessária, adequada e proporcional numa sociedade democrática para salvaguardar, por exemplo, a segurança nacional do Estado-Membro. 

No cerne do Acórdão estaria, portanto, a obtenção por parte dos serviços secretos britânicos de dados de comunicação, por via das operadoras de telecomunicações. Em concreto, estas agências tinham acesso a dados pessoais em massa, como dados de localização, informação financeira e comercial, bem como dados de comunicação suscetíveis de incluir dados sensíveis protegidos pelo sigilo profissional. Ademais, de acordo com os factos do caso, estes dados seriam tratados de forma automática e partilhados com agências terceiras e parceiros internacionais.

Neste contexto, uma das questões colocadas ao Tribunal de Justiça prendeu-se em saber se acessos a dados pessoais como aquele preconizado pelo sistema britânico vão de encontro ao exigido pelo Direito da União Europeia. Aqui, o Tribunal teve de fazer uma ponderação sobre os interesses em jogo: por um lado, a necessidade de proteger os dados pessoais e a privacidade dos consumidores e, por outro, a salvaguarda da segurança nacional. 

Assim sendo, embora aceitando que o art. 15.º da Diretiva permite derrogações aos direitos consagrados nos artigos anteriores com base em interesses de segurança nacional, o Tribunal de Justiça considerou como uma ingerência desproporcional a transmissão generalizada e indiferenciada dos dados de tráfego e localização dos consumidores às agências de serviços secretos, tendo levantado dois grandes argumentos nesse sentido.

Em primeiro lugar, afirmou que permitir esta transmissão generalizada e indiferenciada seria tornar uma exceção (a derrogação ao princípio da confidencialidade) na regra, algo que vai contra o espírito da Diretiva. Em segundo lugar, conclui que uma derrogação tão ampla como esta, na medida em que permite a transmissão de dados em massa, não respeita o princípio da proporcionalidade nem tão pouco os direitos fundamentais consagrados na Carta. Nesse sentido, afirmou que a derrogação não ocorre na estrita medida do necessário, já que as normas em causa não são claras e precisas, não regulando, portanto, o âmbito de aplicação desta derrogação, nem os seus requisitos mínimos, de modo a garantir uma ingerência mínima nos direitos fundamentais dos titulares de dados.

Assim, na medida em que a transmissão de dados é feita de forma generalizada e indiferenciada (abarcando pessoas perante as quais não há qualquer indício de cometimento de um ato ilícito ou de um nexo que ligue o seu comportamento a uma ameaça à segurança nacional), a regra da confidencialidade torna-se quase numa exceção, algo contrário ao espírito da Diretiva e da Carta, que não poderá ser justificado mesmo por motivos de segurança nacional.

Em suma, o Acórdão Privacy International segue a linha jurisprudencial de outros acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça, como os Acórdãos Digital Rights Ireland e Tele2 Sverige AB, nos quais este teve de se pronunciar sobre a utilização de dados pessoais em massa de modo a salvaguardar interesses de luta contra a criminalidade. Também aí o Tribunal de Justiça se mostrou relutante a permitir a utilização em massa de dados de tráfego e de localização dos assinantes de serviços de telecomunicações para fins de interesse público dos Estados-Membros, pelo que a decisão no Acórdão Privacy International não é muito surpreendente. Contudo, embora não tenha esse caráter tão inovador, a verdade é que toca num aspeto extremamente sensível de contacto entre Direito do Consumo, e a proteção de dados e segurança nacional. De facto, caso o Tribunal tivesse decidido no sentido inverso, estaria a deturpar os direitos conferidos aos consumidores pela Diretiva 2002/58, utilizando-os contra si próprios, ao permitir que os dados recolhidos não fossem apenas utilizados para os fins visados na Diretiva, mas também para vigiar preventivamente os consumidores. Assim sendo, ao concluir que nem por motivos de segurança nacional poderão as agências de segurança fazer recolhas em massa de dados obtidos pelas operadoras de telecomunicações, o Tribunal de Justiça garantiu a eficácia dos direitos conferidos aos consumidores, bem como a proteção dos seus dados pessoais e da sua privacidade.

Citação na arbitragem (de consumo)

Jurisprudência

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) proferiu no passado dia 27 de outubro uma decisão muito interessante no que respeita à citação no processo arbitral.

No essencial, está em causa uma ação de anulação de uma sentença do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA), proposta pela empresa, com o fundamento de não ter sido citada de forma adequada ao exercício do seu direito de defesa.

Com efeito, a empresa foi citada por mensagem de correio eletrónico simples, conforme está previsto no Regulamento do CASA (art. 56.º, n.ºs 5 e 6), entidade à qual a empresa tinha previamente aderido plenamente, vinculando-se, portanto, a nesse sede resolver os litígios emergentes dos contratos a celebrar com os seus clientes.

É importante notar que a empresa não teve qualquer intervenção no processo arbitral. Se tivesse participado, o problema não se colocaria, uma vez que se teria de considerar sanado qualquer vício relativo à chamada da parte ao processo.

O TRL decide anular a decisão, com o fundamento de que “viola o princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no art. 20.º da Constituição, a citação que não ofereça as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e/ou que torne impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação. É o caso de uma citação feita por correio eletrónico simples provido de assinatura eletrónica simples, no âmbito de processo do CC, dirigida a uma sociedade comercial que vende veículos automóveis”.

Com todo o respeito, em especial tendo em conta a fundamentação aprofundada, e reconhecendo que se trata de uma questão complexa, não acompanho a decisão do tribunal.

Assim, os poderes do tribunal arbitral tinham neste caso como fonte uma convenção de arbitragem, formada na sequência de adesão plena da empresa e posterior aceitação por parte do consumidor [1]. Através da adesão plena, a empresa compromete-se a resolver os litígios de consumo posteriores através de arbitragem, se o consumidor iniciar o processo no CASA. Ao comprometer-se neste sentido, a empresa aceita a jurisdição do CASA e o seu Regulamento. Ora, o Regulamento prevê a citação, entre outras possibilidades, por meio de uma mensagem de correio eletrónico e a empresa, no documento de adesão plena, forneceu um endereço de correio eletrónico. Assim, não acompanho a afirmação constante do acórdão de que “não está demonstrada a existência de acordo entre as partes para a definição de endereço eletrónico para comunicações entre si”. Note-se que esta afirmação parece decisiva para a decisão do tribunal. Se considerasse que existia esse acordo, então parece que a citação poderia ser por via de mensagem de correio eletrónico.

Acresce que o e-mail é um meio perfeitamente apto, rápido e eficaz, de tornar conhecidos factos, com vantagens claras em relação a outros meios, como a carta, que demora mais tempo a ser entregue. Num processo que se pretende informal e célere, é essencial que, no respeito dos princípios fundamentais do processo civil, se utilizem os meios mais eficazes para a obtenção em tempo de uma decisão justa. Reconhece-se que a prova do envio de um e-mail é mais complexa, nomeadamente se for através de correio eletrónico simples. Aliás, o TRL parece admitir que a citação possa ser feita por correio eletrónico, se lhe for aposta assinatura eletrónica qualificada. Nota-se, contudo, que a assinatura eletrónica qualificada nada garante em relação ao destinatário do e-mail, pelo que não parece resolver o problema.

Em suma, havendo acordo, ainda que tácito, quanto ao meio de citação, a citação por mensagem de correio eletrónico, em conformidade com esse acordo, deve considerar-se que respeita os princípios fundamentais do processo civil.

A minha conclusão seria diferente se, da não intervenção da parte regularmente citada no processo, resultasse algum efeito cominatório. Ora, nos termos do art. 35.º da Lei da Arbitragem Voluntária, a não-contestação não pode ser considerada, “em si mesma, como uma aceitação das alegações do demandante”. Assim se justifica que, no caso em análise, o tribunal arbitral tenha julgado a ação apenas parcialmente procedente.

Três notas finais.

Em primeiro lugar, consideramos que o centro de arbitragem poderia, neste caso, ter tentado contactar a empresa por outras vias, nomeadamente pelo telefone. O telefone é um meio muito eficaz de contacto, que permite falar diretamente com a pessoa em causa e perceber se recebeu ou não a comunicação. Tem o mesmo problema do correio eletrónico no que respeita à prova, mas parece-me mais importante para o exercício efetivo do direito de defesa o conhecimento real do processo do que a tentativa de encontrar formas de o ficcionar. A ausência destes contactos adicionais não gera, contudo, na minha opinião, a invalidade da decisão.

Em segundo lugar, se estivesse em causa uma situação de arbitragem necessária (v. art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor), o raciocínio teria de ser diferente. Ainda assim, parece-me que a citação poderia ser feita por correio eletrónico, mas sempre acompanhada de outros meios auxiliares, como o telefone, tentando garantir a participação efetiva da parte no processo. No caso de não obter resposta por nenhuma outra via, parece-me que terá de ser enviada uma carta registada para a sede da empresa, sendo suficiente, neste caso, para se considerar citada, a prova da recusa da receção da carta. A citação edital, figura criticável, por ser meramente ficcional e não garantir minimamente o conhecimento real da existência do processo, não tem nem deve ter lugar no processo arbitral (tal como não deveria ter lugar no processo judicial).

Em terceiro lugar, extravasando o tema deste texto, é interessante notar como os objetivos da arbitragem de consumo são desvirtuados no momento em que a questão passa para os tribunais judiciais. Como consequência natural da anulação da sentença arbitral, o TRL determina que as custas devem ser suportadas pelo requerido, ou seja, pelo consumidor. Assim, o consumidor optou por um meio de resolução alternativa de litígios de consumo, o qual deve ser gratuito ou, no máximo, estar sujeito ao pagamento de uma taxa de valor reduzido (v. art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 144/2015). Em outubro de 2020, mais de dois anos e meio depois de ter iniciado a ação no centro de arbitragem, o processo volta ao início e o consumidor já incorreu em despesas certamente superiores à taxa de valor reduzido para que remete a lei (a qual, realce-se, se impõe por força da Diretiva 2013/11/UE).

 

[1] Sobre a natureza jurídica da adesão plena e a qualificação da situação em causa como convenção de arbitragem, v. Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 177 e segs..

Energia elétrica, prescrição e acesso ao contador

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje à análise de uma interessante decisão do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL), proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Estava em causa, no essencial, a eventual prescrição (ou caducidade) do direito do fornecedor de energia elétrica à diferença entre o valor estimado (e cobrado) e o valor real correspondente ao consumo efetivo entre 29/11/2013 e 9/10/2019.

Apesar de a empresa ter enviado cerca de 20 cartas à consumidora e estarem registadas 12 deslocações ao local, nunca foi facilitado o acesso ao contador, que se encontra dentro da residência. Por a situação ser imputável à consumidora, o tribunal arbitral considera que não se verifica a prescrição do direito da empresa, nos termos do art. 10.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96).

O art. 10.º-2 estabelece que, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.

Não se prevê neste regime, pelo menos expressamente, a situação de a contagem do consumo real ser impedida pelo consumidor e a sua interação com o regime da prescrição.

O art. 67.º-5 do Decreto-Lei n.º 194/2009 contém uma regra especial aplicável ao contrato de prestação de serviços de fornecimento de água: “o prazo de caducidade das dívidas relativas aos consumos reais não começa a correr enquanto não puder ser realizada a leitura por parte da entidade gestora por motivos imputáveis ao utilizador” (itálico nosso). Esta regra deve ser estendida, por analogia, aos restantes serviços públicos essenciais, nomeadamente a eletricidade, que está em causa no processo em análise, que implicam leituras de contador para aferição dos consumos reais, podendo sempre recorrer-se, adicionalmente, à figura do abuso do direito, que pode limitar, estando verificados os pressupostos para a sua aplicação, o direito do utente a invocar a caducidade.

Concorda-se, portanto, com a solução dada na sentença, em especial tendo em conta que o comportamento da consumidora é particularmente censurável. É preciso não esquecer, contudo, que também cabe à empresa evitar que estas situações de incumprimento se prolonguem, não devendo arrastar o problema ao longo de tanto tempo, com vista à prevenção do endividamento excessivo dos consumidores.

Do ponto de vista processual, a decisão suscita algumas dúvidas.

Com efeito, o tribunal arbitral condena a consumidora ao pagamento do valor devido, apesar de não ser referida na sentença a dedução de qualquer pedido por parte da empresa. A ação é proposta pela consumidora, pelo que esta apenas deverá poder ser condenada se houver um pedido reconvencional.

Outra questão interessante consiste em parecer ter existido um acordo entre as partes, embora posterior ao momento em que a decisão é proferida. Pode ler-se que, “proferida a decisão e ouvida a consumidora quanto às forma do pagamento da quantia não prescrita e em dívida, esta, manifestou dificuldade em pagar o valor em dívida de uma só vez, tendo-se proposto e foi aceite pela requerida reclamada, que o pagamento seja efetuado em 15 prestações mensais e sucessivas”.

A existência de um acordo posterior à decisão, mediado pelo julgador e referido na sentença constitui um interessante exemplo da informalidade que marca a resolução alternativa de litígios de consumo, conseguindo obter-se uma solução mais adequada aos interesses das partes.

Na minha opinião, a decisão deveria, no entanto, pelo menos em parte, ser homologatória do acordo obtido (e não condenatória, como se deixou, aliás, já escrito).

Bens produzidos de acordo com as especificações do consumidor e direito de arrependimento

Jurisprudência

No passado dia 21 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu uma decisão bastante interessante, no âmbito do processo C-529/19 (Möbel Kraft), referente ao direito de arrependimento em casos em que os bens são produzidos de acordo com as especificações do consumidor.

Começando pelo enquadramento, ML celebrou, por ocasião de uma feira comercial, com a Möbel Kraft, empresa de móveis e design de interiores alemã, um contrato de compra e venda de uma cozinha por medida. Posteriormente, ML invocou o direito de arrependimento e recusou a entrega da cozinha.

Deste modo, baseando-se no incumprimento do contrato por parte do consumidor, a Möbel Kraft intentou no Tribunal de Primeira Instância de Potsdam, Alemanha, uma ação de indemnização por perdas e danos.

De acordo com o art. 9.º-1 da Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, o consumidor goza de um prazo de 14 dias para exercer o direito de arrependimento referente ao contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial, sem que lhe seja exigida a indicação do motivo e sem qualquer custo adicional além dos que se estabelecem nos arts. 13.º-2 e 14.º.

Importa referir que o art. 16º da referida Diretiva consagra exceções ao direito de arrependimento. Ora, não há direito de arrependimento por parte do consumidor nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial no caso do “fornecimento de bens realizados segundo as especificações do consumidor ou claramente personalizados”.

Da leitura do § 312g, n.º 2, do Código Civil alemão, que transpõe para o ordenamento jurídico nacional o art. 16.º da Diretiva 2011/83/UE, resulta que o consumidor não dispõe de um direito de arrependimento nos casos em que estejamos perante um contrato de fornecimento de bens não prefabricados e realizados segundo a escolha individual do consumidor ou que sejam claramente adaptados às suas necessidades.

A questão que o órgão jurisdicional de reenvio coloca consiste em saber se “o artigo 16.°, alínea c), da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que a exceção ao direito de [arrependimento] prevista nesta disposição é oponível ao consumidor que celebrou um contrato fora do estabelecimento comercial relativo à compra e venda de um bem que deve ser realizado segundo as suas especificações, quando o profissional não tenha iniciado a produção do referido bem”.

O TJUE responde que, de forma inequívoca, resulta da redação do art. 16.º-c) da Diretiva 2011/83/UE que essa exceção é intrínseca ao próprio objeto do contrato, sendo este a produção de um bem “segundo as especificações do consumidor, na aceção do artigo 2.º, ponto 4, da mesma diretiva”. Deste modo, conclui o TJUE que a exceção ao direito de arrependimento “é oponível ao consumidor que celebrou um contrato fora do estabelecimento comercial relativo à compra e venda de um bem que deverá ser realizado segundo as suas especificações, independentemente da questão de saber se o profissional iniciou a produção do referido bem”.

Na minha opinião, esta apresenta-se como uma interpretação sensata, uma vez que, apesar de parecer desfavorável ao consumidor, por não lhe assistir neste tipo de situações o direito de arrependimento, permite que este faça uma reflexão mais profunda antes de se vincular a um contrato com este tipo de objeto. Além disso, permite fortalecer a segurança jurídica das relações entre profissional e consumidor (neste sentido, vide os considerandos 7 e 40 da Diretiva). Por fim, o artigo em apreço também garante que a existência ou inexistência do direito do consumidor de se arrepender do contrato não dependa do estado de avanço da execução desse contrato pelo profissional, sendo que, na maioria das vezes, esse estado não lhe é comunicado, e sobre o qual não tem, por maioria de razão, nenhuma influência. A exigência do cumprimento do dever de informação ao consumidor relativo à inexistência do direito de arrependimento fortalece a posição aqui adotada pelo TJUE.

Ação executiva e PERSI em contratos de crédito ao consumo

Jurisprudência

Comentário ao Acórdão do STJ, de 19-05-2020, Rel. Maria Olinda Garcia

 

Sumário do Acórdão

  1. A instituição de crédito que move ação executiva contra o mutuário consumidor, que se encontra em mora, tem o ónus de demonstrar que cumpriu as obrigações impostas pelos artigos 12º e seguintes do DL n.227/2012, que prevê o regime jurídico do PERSI.
  2. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.18º daquele diploma).
  3. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância.

 

O caso

A questão central resolvida pelo STJ neste acórdão surgiu num processo executivo movido por uma entidade bancária (mutuante) contra uma cliente consumidora (mutuária), visando a entrega de quantia certa correspondente ao montante mutuado não reembolsado, acrescido dos juros remuneratórios e de mora.

Em sede de embargos de executado, o consumidor alegou não ter sido cumprido pelo Banco o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento, nos contratos de crédito bancário ao consumidor (PERSI), previsto nos artigos 12.º e ss. do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que prevê o Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI).

Julgados improcedentes os embargos de executado pelo tribunal de primeira instância, o consumidor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que os julgou procedentes, absolvendo a executada (consumidora) da instância executiva.

Foi então a vez da exequente (entidade bancária) recorrer para o Supremo, que, como veremos, confirmou a decisão da Relação.

 

Enquadramento

O STJ foi então convocado a decidir se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei quando entendeu que o recurso ao PERSI era uma condição objetiva de procedibilidade da ação executiva, constituindo a sua ausência uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, com a consequente absolvição da instância.

Podendo parecer uma questão muito técnica e desinteressante, não devemos menosprezar a sua importância, sobretudo numa fase em que se avizinha uma anunciada crise económico-financeira de enormes repercussões, com a natural consequência de (risco de) incumprimento contratual por parte dos mutuários consumidores.

É neste plano que se assume determinante o mencionado DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro (PARI), aprovado curiosamente em plena crise económico-financeira iniciada em 2007/2008.

Este diploma protege especificamente o cliente bancário que seja consumidor, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor,  que celebra contratos de mútuo com entidades bancárias, nos termos do art. 3.º- a) do PARI.

O seu regime subdivide-se, essencialmente, em dois mecanismos. O primeiro, situado num plano temporal prévio ao incumprimento contratual do mutuário consumidor, previsto e regulado nos artigos 9.º a 11.º, sob a designação elucidativa de “Gestão do risco de incumprimento”. O segundo, previsto já para fazer face à mora dos mutuários no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, previsto nos artigos 12.º a 21.º, onde se regula então o Procedimento Extrajudicial de Situações de Incumprimento (PERSI).

Resumirei a tramitação deste segundo instituto: vencendo-se uma obrigação decorrente do contrato de mútuo, a entidade bancária deve comunicar a situação de mora ao cliente e tentar apurar a que se deve tal atraso (art. 13.º). No caso de o incumprimento durar mais de 30 dias a contar da data de vencimento da obrigação, a entidade bancária deve integrar o cliente no PERSI, assumindo tal procedimento carácter obrigatório (art. 14.º- 1), informando o cliente de tal situação (art. 14.º-4). Segue-se uma fase negocial em que a entidade bancária e o cliente procuram obter um acordo de pagamento, a menos que se verifique que não dispõe de capacidade financeira para retomar o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, nem para regularizar a situação de incumprimento, através, designadamente, da renegociação das condições do contrato ou da sua consolidação com outros contratos de crédito, sendo inviável a obtenção de um acordo no âmbito do PERSI (art. 15.º-1, a)).

Normalmente, extingue-se o PERSI com a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento, mas tal pode também ocorrer com o pagamento integral dos montantes em dívida, pelo decurso do prazo de 90 dias a contar da integração do cliente no PERSI ou com a declaração de insolvência deste, nos termos do art. 17.º.

Ora, no período em que dura o PERSI, está vedado à instituição de crédito o exercício de alguns importantes direitos, entre os quais se destacam a resolução do contrato com fundamento em incumprimento e a propositura de ações judiciais com vista à satisfação do crédito (art. 18.º).

 

De volta ao acórdão

No caso em apreço, a instituição de crédito propôs ação executiva contra o mutuário consumidor, sem antes proceder à integração do cliente no PERSI, o que, como vimos, é obrigatório (art. 14.º-1).

Concluíram (muito bem, a meu ver) o TRL e o STJ que tal se deve entender como inadmissível, considerando o PERSI (rectius, a sua extinção) um “pressuposto específico da ação executiva para pagamento de quantia certa quando a obrigação exequenda respeita a financiamento de uma entidade financeira a um consumidor”.

Ora, não havendo logrado o exequente (entidade bancária) provar a realização prévia do procedimento extrajudicial, como era seu ónus, verifica-se a existência de uma exceção dilatória inominada (art. 577.º do Código de Processo Civil, doravante CPC), de conhecimento oficioso (art. 578.º CPC), cuja consequência é a absolvição da instância executiva, nos termos dos arts. 576.º-2 e 726.º-2, b) CPC.

Sendo uma decisão de carácter formal e não uma decisão de mérito, nada impedirá a instituição de crédito de, uma vez cumprido o PERSI, propor nova ação executiva contra o cliente consumidor (art. 279.º do CPC), nomeadamente nos casos de não ser obtido acordo com vista à regularização da dívida ou de se verificar a incapacidade do cliente bancário para cumprir, de forma continuada, as obrigações decorrentes do contrato de crédito.